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A MARINHA DE D. JOÃO III (1)
D. João III: rei de Portugal
D. João III: rei de Portugal
o dar início à série A Marinha de deram foi o de que se casasse tão depressa embora com dificuldades de sobrevivência
D. João III, impõe-se traçar um per- quanto possível. Sugeriram-lhe alguns que até à idade adulta, devido à potenciação de
Afil do monarca e fazer um esboço o fizesse com Dª Leonor de Áustria, a rainha um factor de risco hereditário. Mas a ques-
geral das circunstâncias em que decorreu o viúva de D. Manuel (de quem, aliás, estive- tão fundamental que se foi gerando com es-
seu reinado, de quase 36 anos. Nasceu a 6 de ra noivo), mas recusou essa ideia alegando tas ligações foi a consolidação progressiva
Junho de 1502, no dealbar do século de uma estrutura familiar que hoje
do humanismo, cuja influência em se me afigura muito mais poderosa
Portugal estaria sempre relacionada do que a própria estrutura do esta-
com as viagens de descobrimento, e do: o clã Habsburgo tem, por si pró-
com um saber erudito cultivado em prio, interesses de poder familiar
tertúlias cortesãs acarinhadas pelo que podem estar acima de Estados
rei. Teve dos melhores mestres que o governados aqui ou acolá. Ou seja,
país conheceu naquela época – Diogo desenha-se uma estrutura hierárqui-
Ortiz, Tomás Torres, Luís Teixeira–, ca familiar, que tem Carlos V como
mas os cronistas referem alguma de- o grande patriarca, decidindo e ma-
satenção na aprendizagem do latim nipulando coisas que me parecem
e das letras que, apesar de tudo, sem- ultrapassarem os poderes dos esta-
pre protegeu e apoiou. Em contrapar- dos independentes. E esta estrutura
tida demonstrou sempre um enorme velada (por vezes mais clara) cresce
sentido prático, manifesto na forma com o tempo, com a consolidação da
rápida como entendia os problemas posição de Carlos em Espanha e com
concretos e como os resolvia. Fazia o sucesso da guerra com Francisco I
parte daquele tipo de homens, menos (França), que potencia o carácter de
dados a contemplações e a estudos “chefe da família”.
profundos, que respeitam quem os A política de D. João está cada vez
faz e colhem a sua ciência que apli- mais modelada por este condicio-
cam em decisões rápidas e eficazes. nante externo omnipresente: quan-
Apesar de tudo, a importância que do subiu ao trono em 1519 tinha em
deu ao conhecimento e à formação mãos o problema que advinha da
académica da elite portuguesa está viagem de Fernão de Magalhães e,
bem patente na reforma da Univer- nomeadamente, da chegada do na-
sidade, que envolveu a sua transfe- vio de Sebastião del Cano cuja carga
rência de Lisboa para Coimbra (1537), D. João III. os portugueses consideravam ilíci-
com uma nova estrutura e um corpo ta. Tratava-se de traçar no Oriente
docente renovado. Já antes disso tinha criado – como nos diz Frei Luís de Sousa – que “não o semi-meridiano de Tordesilhas, de forma
um sistema de bolsas de estudo que permiti- lhe sofria o ânimo haver de chamar espo- a saber o que nessas terras longínquas era
ram a umas dezenas de portugueses estudar sa a quem dera o nome de mãe”. Acabou português ou castelhano, mas isso não era
em Paris, com um intuito específico de criar por casar com Dª Catarina, uma outra irmã uma tarefa fácil. Navegadores, matemáticos,
um corpo de magistrados e clérigos com uma de Carlos V, mantendo a mesma política de cosmógrafos avançavam com hipóteses que
preparação cuidada, que pudessem frutificar apaziguamento ibérico onde se descortina- não tinham (nem podiam ter) qualquer fun-
em Portugal, dando origem a um núcleo de va o iterativo sonho de união dos reinos pe- damento, porque a determinação da longi-
intelectuais que lhe parecia ser indispensável ninsulares. O soberano vizinho herdara de tude de um lugar não era possível. Depois
à estrutura política do reino. Basicamente, esta seu pai os Países Baixos e o direito ao Du- de alguma discussão inconclusiva, Portugal
é uma ideia estruturante do Estado Moderno, cado de Borgonha, que estava sob domínio aceitou pagar uma quantia de 350 000 duca-
que se entende a si próprio como um sistema francês. Entretanto, na incapacitante loucu- dos, para que fosse reconhecido o seu direito,
complexo, manipulado por funcionários, ne- ra de sua mãe e com a morte do avô, ficava sem mais discussões. As razões desta atitude
cessariamente competentes, que apoiem o po- com todas as possessões dos Reis Católicos podem ter múltiplas interpretações, mas eu
der do monarca. na Península, no Mediterrâneo (Baleares, Si- ligo-a ao mesmo carácter prático que já foi
D. João III iria testemunhar algumas das cília, Sardenha e Nápoles) e nas Índias Oci- apontado ao rei: apercebendo-se da impossi-
transformações mais complexas que a Eu- dentais (América). Em 1519, pela morte de bilidade de chegar a um acordo fundamenta-
ropa sofreu na passagem da Idade Média ao seu avô, o imperador Maximiliano, herda do cientificamente, propôs-se comprar a ab-
período moderno, com a consolidação de a parte dos Habsburgos da Áustria e Tirol, dicação do seu parceiro à zona em disputa,
um sistema político próprio (o absolutismo) com algumas regiões do sul da Alemanha. evitando combates desgastantes.
e com a explosão territorial de dois grandes Ou seja, transforma-se no maior potentado Este problema resolveu-se com facilidade,
impérios cujo centro político estava na Pe- que a Europa conhecia nos últimos séculos. mas outros tantos vão surgindo em África,
nínsula Ibérica. Quando subiu ao trono, em Foi, portanto, com a irmã deste senhor que na Europa, na Índia e no Brasil que não tive-
1521, tinha apenas 19 anos, era solteiro, e es- se casou D. João III, e a aliança estava ainda ram soluções tão imediatas e que vão empe-
tava rodeado de um séquito de conselheiros numa fase primária, porque o próprio impe- nhar esforços navais consecutivos.
que lhe deixara seu pai, recomendando-lhe rador viria a desposar Dª Isabel, a irmã do rei Z
que os ouvisse em todos os negócios do es- de Portugal, completando-se uma teia de ca- J. Semedo de Matos
tado. E um dos primeiros conselhos que lhe samentos, que dariam uma prole abundante, CFR FZ
REVISTA DA ARMADA U MAIO 2005 13