Page 162 - Revista da Armada
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Fruto de uma con- colhos, muitas vezes
corrência feroz, tan- com correntes fortes
to dos navios-va- e imprevisíveis.
por como por parte Arquivo Museu de Marinha De forma a man-
dos grandes veleiros ter o navio rentável,
com casco em fer- a tripulação foi sen-
ro, a Cutty Sark co- do reduzida até aos
meçou a ser utiliza- 19 homens. Ainda
da no tramping (4), assim, tantos quan-
carregando juta em tos uma barca de
Manilla, transportan- quatro mastros, com
do açúcar para Nova casco em ferro, mais
Iorque, carvão para versátil no transpor-
a China, chá para a te (carvão, trigo,
Austrália, etc. madeira, arroz, gua-
Corria o ano de no, etc.), e com ca-
1880, quando os pacidade para 5.000
mastros foram dimi- toneladas de carga.
nuídos em cerca de Por isso, a sua ven-
3 metros, e as vergas da, para desgosto
dos papafigos em A galera Ferreira entrando a barra de Lisboa. de muitos, tornou-
2,30m, sendo as res- se inevitável.
tantes proporcionalmente ajustadas. Apesar mem certo para os conduzir. Homens com Em 22 de Julho de 1895, a Cutty Sark foi
da consequente diminuição da área vélica, nervos de aço, experientes, que desconhe- adquirida pela empresa portuguesa Joaquim
a Cutty Sark ainda chegou a percorrer 182 ciam o medo, capazes de levar o seu navio, Antunes Ferreira & Cª, por 1.250 libras, tendo
milhas em 12 horas! No dia 5 de Setembro, permanentemente no limite, em quaisquer sido registada, no mês seguinte, no Lloyd’s
quando navegava entre Anjer e Yokohama, o condições de tempo. Na derrota de regres- Shipping Index, com o nome Ferreira. Dei-
Captain Wallace suicidou-se. so a Inglaterra, era-lhes exigida, sem descan- xando Gravesend a 5 de Setembro, ainda fez
Foi só em 1883 que John Willis decidiu atri- escala no Porto, antes de chegar a Lisboa no
buir à Cutty Sark, uma regular participação na Comandantes da “Cutty Sark” dia 28 de Outubro. A partir de então o na-
rota da lã, entre a Austrália e a Inglaterra. E vio começou a ser utilizado no transporte de
coube ao Captain Woodget – que muitos afir- - George Moodie (1869-1872) carga geral – açúcar, cacau, madeira, vinho,
mam ter sido o melhor comandante do navio - F. W. Moore (1872-1873) marfim, tabaco, carvão, etc. –, tanto para
–, o privilégio, de, no decorrer dessas viagens, - W. E. Tiptaft (1873-1878) portos estrangeiros, como para as colónias,
ter conseguido alguns recordes notáveis. Re- - J. S. Wallace (1878-1880) visitando, regularmente, os Açores, Luanda,
duzindo a tripulação para um terço, contratou - Bruce (1880-1882) Moçâmedes, Rio de Janeiro, Cape Town,
rapazes, em vez de marinheiros experientes, - E. Moore (1882-1885) Lourenço Marques, New Orleans, etc.
tornando o navio rentável. A avaliar pelas suas - Richard Woodget (1885-1895) Deste período, encontrámos testemunhos
palavras, muitos destes miúdos, com idades de oficiais portugueses afirmando que, com
compreendidas entre os 12 e os 16 anos, ti- so, uma atenção total durante 24 horas, bem bom vento, o navio ainda atingia os 16 nós.
nham um desempenho claramente superior como qualidades excepcionais, de navegado- Em 1909, a galera Ferreira encalhou no
ao dos marinheiros tarimbados. res e marinheiros, para levar o navio, em segu- Índico, depois de ter sido apanhada por
Transportando carga geral, o navio nave- rança, dia e noite, através de ilhas, baixos e es- um ciclone. Quando colocada novamente
a flutuar, verificou-se que havia perdi-
ca de um mês, carregava lã. Na viagem do o leme.
de regresso, feita pelo cabo Horn, a Cut- No ano de 1912 desarvorou os mastros
ty Sark foi, frequentemente, o navio mais grande e gata (5) pelo que, devido à escas-
rápido, tendo, em 1885-86, cumprido a sez de meios, foi decidido que, doravante,
distância em apenas 67 dias! Depois dis- o navio passaria a armar em lugre-pata-
so, nenhum outro veleiro conseguiu me- cho (6), tendo sido registado como lugre
lhorar esta marca. na capitania do porto de Lisboa, a 26 de
gava até à Austrália, aonde, durante cer- Arquivo CTEN António Gonçalves
Na tentativa de bater o recorde do Ther- Dezembro. No entanto esta informação
mopylae, na viagem entre a China e a In- vai contra a opinião comum, de este ter
glaterra, John Willis ainda enviou a Cutty armado em barca, pelo menos em deter-
Sark a Xangai, no ano seguinte. Com o minado período. Ainda assim, em todas as
mercado do chá nas mãos dos navios-va- fotografias que conhecemos do navio, não
por, aguardou aí três meses para carregar. existe nenhuma com essa armação. Nalgu-
Sem sucesso, suspendeu, tendo navegado mas das existentes no arquivo do Museu de
apenas em lastro até Sidney. Marinha, em que o navio arma em galera
Segundo os críticos da época, no perío- ou lugre-patacho, a legenda identifica-o
do em que praticou a rota do chá, a Cutty como «barca Ferreira».
Sark teve apenas bons comandantes. Mas, Em reforço da nossa ideia, parecem
aquele que, por muitos, era considerado vir os documentos, bem como o termo
o melhor navio, nunca teve o melhor co- de abertura do Diário Náutico que con-
mandante. Logo, a sua prestação nas cor- sultámos:
ridas do chá foram boas, mas nunca sufi- «Frederico Vieira de Sousa, Capitão do
cientemente boas para o seu armador. lugre “Ferreira” (ex-galera) matriculado
Comparáveis a cavalos de corrida, tam- O lugre-patacho Ferreira, pouco antes de ser vendido ao na Capitania do Porto de Lisboa a 7 de
bém os clippers do chá precisavam do ho- Captain Wilfred Dowman. Junho de 1915».
16 MAIO 2005 U REVISTA DA ARMADA