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A MARINHA DE D. JOÃO III (19)
Martim Afonso de Sousa
Martim Afonso de Sousa
ma das figuras mais em evidência mente, no que à navegação dizia respeito. o Pacífico, mas também apareceram navios
na Índia, durante os últimos qua- São vários os documentos que nos sugerem espanhóis junto ao Rio de Janeiro e ao Cabo
Utro anos do governo de Nuno da este modelo de saber, e, um deles, é um Frio, na zona em que se fazia o resgate das
Cunha, foi Martim Afonso de Sousa, que texto do próprio Nunes que o coloca como madeiras. Deve dizer-se, no entanto, que
chegara em 1534, comandando uma arma- interlocutor numa explicação complexa de foram casos pouco significativos que não
da de cinco naus. Nas edições anteriores tive geometria esférica. Escreve o eminente ma- perturbaram as linhas gerais das políticas
ocasião de salientar que algumas das suas temático que “falando com Martim Afonso ibéricas em relação aos territórios ultrama-
posturas só não tiveram consequências gra- de Sousa sobre a navegação que fez para as rinos. Mais violento e complexo foi o apare-
ves porque se tratava de um fidalgo cimento de navios franceses, cujo rei
de alta estirpe, muito próximo de não aceitava (compreensivelmente)
D. João III, que servia com dedica- um acordo internacional que o ex-
ção desde muito jovem. Partiu para cluía. A viagem não era muito di-
o Oriente pouco tempo depois de fícil e, sobretudo, conseguiam ir e
regressar de um longa expedição ao voltar sem avistarem nenhum na-
Brasil, onde acumulou vários suces- vio português.
sos, e foi o próprio rei que o nomeou As viagens de Cristóvão Jaques,
para o cargo de Capitão-mor do mar em 1516, em 1521-22 e em 1527-28
da Índia. Existe, aliás, um conjunto tiveram a dupla função reconhe-
de cartas autógrafas de Afonso de cer toda a costa – indo até ao Rio da
Sousa endereçadas ao rei e ao Conde Prata e entrando pelo Paraná até ao
da Castanheira, seu ministro, onde interior, de onde se supunha vir o
manifesta esta convicção e pressio- precioso metal – mas também a de
na a coroa de forma inusitada para marcar uma presença de força que
que lhe seja dado o cargo, alegando resultou num violento combate na-
os altos serviços prestados. O sobera- val com 4 navios franceses, em 1527.
no revela, aliás, na forma como lidou A presença dos súbditos de Francisco
com o assunto o tacto e o rigor na go- I era cada vez mais significativa e foi
vernação que muitos teimam em não essa a razão porque, em 1530, foi en-
lhe reconhecer e que já aqui fiz sen- viada a expedição de Martim Afonso
tir por diversas vezes. Naturalmen- de Sousa, com cinco navios bem arti-
te que não cedeu a nenhuma destas lhados. Dela ficou um diário interes-
pressões, mas teve o cuidado de não santíssimo, escrito por Pêro Lopes de
ferir as susceptibilidades do seu ser- Sousa (irmão do Capitão-mor), com
vidor, por certo imaginando que vi- pormenores da navegação que julgo
ria ainda a necessitar dos seus servi- interessante analisar e de que volta-
ços, como de facto veio a acontecer. rei a falar na próxima revista. Impor-
Em 1539 regressou a Portugal, onde ta, por ora, salientar o tempo que os
foi recebido com alguma frieza, mas Martim Afonso de Sousa navios estiveram na costa brasileira
em 1541 foi efectivamente nomeado Livro de Lizuarte de Abreu. (mais de dois anos) e a forma como
governador da Índia, ocupando o cargo de partes do sul, antre outras cousas me disse sucessivamente se reabasteceram, construí-
1542 a 1545. Do seu governo – tão polémi- com quanta diligencia e por quantas ma- ram navios, repararam outros, e não deram
co quanto muitos outros – falaremos numa neiras tomara a altura dos lugares [latitude] tréguas aos franceses que encontraram. So-
futura oportunidade, importando agora re- em que se achara”. Está a referir-se à expe- bretudo, aperceberam-se de que era neces-
ferir a sua carreira antes de 1534, a data da dição efectuada entre 1530 e 1533 à costa do sário construir pontos de apoio na costa, e
sua primeira viagem ao Oriente. Brasil e que constitui um marco importante assim o fizeram na entrada da baía de Gua-
Crê-se que nasceu em Vila Viçosa, no ano na afirmação da soberania portuguesa na- nabara e em S. Vicente (Santos), onde se
de 1500, entrando muito novo no convívio da quele território ultramarino, onde, a pouco montou um pequeno estaleiro e depósitos de
corte e merecendo o privilégio de uma edu- e pouco, se ia delineando um conflito agu- material, abrindo o caminho para o regime
cação perto do príncipe e dos infantes. É ele do com a França, cujos navios cobiçavam o de capitanias que D. João III viria a estabele-
próprio que diz ter servido D. João III desde precioso pau-brasil. cer logo a seguir. Compreendeu o rei que não
a idade de 16 anos, sendo muito provável Na verdade a presença portuguesa na era possível vigiar uma costa com a dimen-
que tenha integrado a tertúlia cultural que, costa brasileira já fora marcada pela rivali- são que aquela tinha, sem se estabelecerem
mais tarde, teve como centro a figura do in- dade com a vizinha Castela, que se aperce- em terra, e transpôs para o Brasil o sistema
fante D. Luís e Pedro Nunes como principal bera de que, a sul da costa explorada pelos de capitanias que já tinha sido montado na
mentor. Quer isto dizer que teve uma for- portugueses, a terra continuava para sud- Madeira e Açores, onde os donatários, ao
mação académica de alto nível, muita pró- oeste e havia territórios que caíam dentro defenderem os seus próprios interesses, de-
xima dos padrões humanistas europeus, do seu espaço de exploração e conquista, fendiam também os da coroa. Com a viagem
com as particularidades que a euforia da definido pelo Tratado de Tordesilhas. As ex- de Martim Afonso de Sousa começava, por-
expansão marítima deu a Portugal. Muito pedições mais conhecidas foram a de João tanto, o povoamento do Brasil.
provavelmente dominava o latim, conhecia Dias de Solis (português ao serviço de Cas- Z
alguns dos textos clássicos gregos e latinos, tela) ao Rio da Prata e, mais tarde, a de Ma- J. Semedo de Matos
e era entendido nas matemáticas, nomeada- galhães, que encontrou uma passagem para CFR FZ
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