Page 264 - Revista da Armada
P. 264

O piloto João de Lisboa
                            O piloto João de Lisboa


                                      4. A consagração do decano

               ão obstante não havermos encontrado  sido essas «outras cousas em que foy encarre-  sua morte, os tratados e roteiros atribuídos a João
               informações sobre a actividade de João  gado por meu seruiço», e que eventualmente  de Lisboa mereceram a sua fixação num docu-
         Nde Lisboa, relativa ao período compre-  só foram concluídas mais de três anos depois  mento nobre, possivelmente a partir dos muitos
         endido entre 1523 e 1525, tudo indica, dada a  da morte de Gonçalo Álvares, o motivo para a  escritos a ele atribuídos e que à época ainda se
         progressão que vai operando como piloto da  demorada promoção ao cargo de «piloto mor  encontravam em circulação. Em reforço desta
         carreira da Índia, que neste período possa ter  da navegação da Índia e mar oceano»? Desta  nossa ideia parecem concorrer também mais
         feito mais alguma viagem ao Oriente. O que  forma, parecer-nos-ia admissível o facto de que  três testemunhos:
         o documento seguinte, datado de 12 de Janei-  sendo João de Lisboa, por esta altura, o mais   1. Em 1520, o piloto de Fernão de Maga-
         ro de 1525, de certa forma vem corroborar, ao  antigo e experiente piloto em actividade, que  lhães, João Lopes de Carvalho , reconhece o
                                                                                                     3
         nomeá-lo para o cargo de «piloto mor da nave-  D. João III lhe possa ter encomendado a impor-  Cabo de Santa Maria, junto ao rio da Prata,
         gação da Índia e mar oceano» :     tante tarefa de passar a escrito tudo aquilo que  através de uma relação ou roteiro atribuído a
                              1
           «[…] faço saber que avendo eu respeyto ao muyto  constituíam os seus conhecimentos e a sua ex-  João de Lisboa,
         seruiço que Joham de Lixboa meu pyloto me tem                           «[…] los quales dixo el piloto Carauallo […] y
                                                             Arquivo CTEN António Gonçalves
         feito asy nas armadas em que este ora foy como na                     que lo sabia por relacion de Iuan de Lisboa piloto
         nauegaçam das partes da Imdia e outras cousas em                      Português […]».
         que foy encarregado por meu seruiço e em que deu                        Esta «relacion» aponta claramente para os es-
         de sy sempre verdadeyra comta e bõo recado e por-                     critos do piloto, neste caso o roteiro daquelas
         que espero que ao diamte asy a dee querendo-lhe fa-                   paragens. O que a ser verdade, vem confirmar
         zer graça e merçee tenho por bem e o dou ora daquy                    a existência de documentos técnicos, relativos
         em diante por meu pyloto mor da dita nauegaçam                        às sucessivas viagens de exploração em que
         das partes da Imdia e mar ociano asy e na maneyra                     João de Lisboa participou. E que pelos vistos já
         e com aquelles prijuilegios lyberdades e franquezas                   circulavam naquela época entre os homens do
         com que ho sam e deuem ser os mais pilotos mores                      mesmo ofício. Mesmo partindo do pressupos-
         e ho era Gomçalo Aluares que se finou e prazme por                    to de que parte destes roteiros não seriam da
         fazer mercee ao dito Joham de Lixhoa [sic] que ele                    autoria de João de Lisboa, como defenderam
         tenha e [h]aja de my temça em cada hũu ano de Ja-                     alguns historiadores, o facto é que aparente-
                           c
         neiro desta era presemte de bxxb em diamte dex mill                   mente circulavam como sendo ele o seu autor.
         reaes […] o qual Joham de Lixboa jurou na minha                       O que não nos parece ser um factor de some-
         chancelaria aos samtos avangelhos que bem e ver-                      nos importância.
         dadeiramente syrua o dito oficio carguo guardamdo                       Pensamos, no entanto, que a demora na sua
         em todo meu seruiço […]» . 2                                          derradeira promoção pode indiciar que talvez
           Uma vez mais João de Lisboa ascende ao                              os seus tratados e roteiros não se encontrariam
         cargo subsequente, deixado vago pela morte de                         completos, mas ainda assim suficientemente
         Gonçalo Álvares, que, ao que tudo indica, terá                        importantes para serem divulgados entre a co-
         ficado sem ser preenchido durante mais de três                         munidade de pilotos coeva, como parece indi-
         anos. Talvez o tempo necessário, e a suposição                        car o testemunho citado supra, feito pelo piloto
         é nossa, para que João de Lisboa pudesse pre-                         português João Lopes de Carvalho, embarcado
         encher algum requisito ainda em falta no seu   Capa da Historia General y Natural de las Índias, Is-  na armada de Fernão de Magalhães .
                                                                                                        4
         extenso curriculum como piloto, uma vez que   las y Terra-firme del Mar Océano, do cronista caste-  2. A afirmação de Fernandez de Navarrete
         por ocasião do falecimento de Gonçalo Álva-  lhano Fernandez de Oviedo y Valdés.  (1756-1844), que logo no início transcrevemos:
         res, como aludimos, apenas ocupou o cargo de  periência nos assuntos da navegação, para que   «Tratando Santa Cruz en su dictámen, […] dice
         «patrão da navegação da Índia e mar oceano».  os pilotos mais novos pudessem ter as suas re-  que se valió para fundarlo del derrotero de Juan de
         Como este documento parece referir, julgamos  ferências, e aos quais certamente adicionariam  Lisbôa, afamado piloto portugués en la carrera de
         que este hiato possa ter estado relacionado com  os conhecimentos de tudo quanto de impor-  la India […]» . 5
         qualquer prestação de outros serviços ao rei,  tante apreendiam durante as viagens na com-  Como se pode constatar, um autor estran-
         aparentemente para além daqueles que decor-  panhia de pilotos mais experimentados. Nesta  geiro refere também a existência de documen-
         riam da sua profissão de piloto, ou seja, levar os  perspectiva, faz algum sentido que terminada a  tos atribuídos a João de Lisboa, desta feita um
         navios da coroa sem percalços até à Índia e ga-  compilação de conhecimentos técnicos, o texto  «derrotero»  da área por onde navegavam. Pese
                                                                                       6
         rantir o seu retorno em segurança, com a respec-  de João de Lisboa fosse copiado, eventualmen-  embora já terem passado vinte anos sobre o fa-
         tiva carga, na viagem de regresso ao reino.  te por alguém desconhecedor da matéria – tal  lecimento de João de Lisboa, como veremos
           Curiosamente, não há qualquer referência  como hoje sabemos que foi –, para que a partir  adiante, os seus roteiros ainda se constituíam
         noutro documento que atribui novas funções  dessa matriz os novos pilotos pudessem aceder  como referência.
         e as correspondentes tenças ao piloto João de  às valiosas informações, tratados e roteiros do   3. O testemunho do cronista castelhano Fer-
         Lisboa, a «outras cousas em que foy encarre-  decano. Consideramos, por isso, que muito pro-  nandez de Oviedo y Valdés (1478-1557), des-
         gado por meu seruiço», facto que desde logo  vavelmente essa cópia, ou uma outra posterior,  crevendo a parte da costa do Brasil, compre-
         despertou a nossa atenção. Não sendo conhe-  tenha estado na origem do famoso códice que  endida entre o Cabo das Correntes e a baía de
         cidas outras colecções de tratados e roteiros tão  se encontra actualmente guardado na casa-forte  Todos-os-Santos, onde se encontra o topónimo
         completas sobre as questões da navegação no  da Torre do Tombo. Não será demais sublinhar,  João de Lisboa, dando nome a um rio nessas pa-
         início do século XVI, anteriores àquelas que in-  que pela análise da letra do códice, outros es-  ragens, tal como vimos anteriormente:
         tegram o códice que hoje designamos por Livro  tudiosos, nomeadamente Luís de Albuquerque   «Desde el Cabo de corrientes hasta la bahia de To-
         de Marinharia de João de Lisboa, surgiu no nos-  (1917-1992), atribuem-lhe uma data circa 1550.  dos Sanctos hay veynte leguas, dentro de la qual bahia
         so espírito uma controversa questão. Não terão  Dito de outra forma, vinte cinco anos depois da  hay algunas isletas. Pero hasta ella en el camino de la

         10  AGOSTO 2008 U REVISTA DA ARMADA
   259   260   261   262   263   264   265   266   267   268   269