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O piloto João de Lisboa
O piloto João de Lisboa
4. A consagração do decano
ão obstante não havermos encontrado sido essas «outras cousas em que foy encarre- sua morte, os tratados e roteiros atribuídos a João
informações sobre a actividade de João gado por meu seruiço», e que eventualmente de Lisboa mereceram a sua fixação num docu-
Nde Lisboa, relativa ao período compre- só foram concluídas mais de três anos depois mento nobre, possivelmente a partir dos muitos
endido entre 1523 e 1525, tudo indica, dada a da morte de Gonçalo Álvares, o motivo para a escritos a ele atribuídos e que à época ainda se
progressão que vai operando como piloto da demorada promoção ao cargo de «piloto mor encontravam em circulação. Em reforço desta
carreira da Índia, que neste período possa ter da navegação da Índia e mar oceano»? Desta nossa ideia parecem concorrer também mais
feito mais alguma viagem ao Oriente. O que forma, parecer-nos-ia admissível o facto de que três testemunhos:
o documento seguinte, datado de 12 de Janei- sendo João de Lisboa, por esta altura, o mais 1. Em 1520, o piloto de Fernão de Maga-
ro de 1525, de certa forma vem corroborar, ao antigo e experiente piloto em actividade, que lhães, João Lopes de Carvalho , reconhece o
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nomeá-lo para o cargo de «piloto mor da nave- D. João III lhe possa ter encomendado a impor- Cabo de Santa Maria, junto ao rio da Prata,
gação da Índia e mar oceano» : tante tarefa de passar a escrito tudo aquilo que através de uma relação ou roteiro atribuído a
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«[…] faço saber que avendo eu respeyto ao muyto constituíam os seus conhecimentos e a sua ex- João de Lisboa,
seruiço que Joham de Lixboa meu pyloto me tem «[…] los quales dixo el piloto Carauallo […] y
Arquivo CTEN António Gonçalves
feito asy nas armadas em que este ora foy como na que lo sabia por relacion de Iuan de Lisboa piloto
nauegaçam das partes da Imdia e outras cousas em Português […]».
que foy encarregado por meu seruiço e em que deu Esta «relacion» aponta claramente para os es-
de sy sempre verdadeyra comta e bõo recado e por- critos do piloto, neste caso o roteiro daquelas
que espero que ao diamte asy a dee querendo-lhe fa- paragens. O que a ser verdade, vem confirmar
zer graça e merçee tenho por bem e o dou ora daquy a existência de documentos técnicos, relativos
em diante por meu pyloto mor da dita nauegaçam às sucessivas viagens de exploração em que
das partes da Imdia e mar ociano asy e na maneyra João de Lisboa participou. E que pelos vistos já
e com aquelles prijuilegios lyberdades e franquezas circulavam naquela época entre os homens do
com que ho sam e deuem ser os mais pilotos mores mesmo ofício. Mesmo partindo do pressupos-
e ho era Gomçalo Aluares que se finou e prazme por to de que parte destes roteiros não seriam da
fazer mercee ao dito Joham de Lixhoa [sic] que ele autoria de João de Lisboa, como defenderam
tenha e [h]aja de my temça em cada hũu ano de Ja- alguns historiadores, o facto é que aparente-
c
neiro desta era presemte de bxxb em diamte dex mill mente circulavam como sendo ele o seu autor.
reaes […] o qual Joham de Lixboa jurou na minha O que não nos parece ser um factor de some-
chancelaria aos samtos avangelhos que bem e ver- nos importância.
dadeiramente syrua o dito oficio carguo guardamdo Pensamos, no entanto, que a demora na sua
em todo meu seruiço […]» . 2 derradeira promoção pode indiciar que talvez
Uma vez mais João de Lisboa ascende ao os seus tratados e roteiros não se encontrariam
cargo subsequente, deixado vago pela morte de completos, mas ainda assim suficientemente
Gonçalo Álvares, que, ao que tudo indica, terá importantes para serem divulgados entre a co-
ficado sem ser preenchido durante mais de três munidade de pilotos coeva, como parece indi-
anos. Talvez o tempo necessário, e a suposição car o testemunho citado supra, feito pelo piloto
é nossa, para que João de Lisboa pudesse pre- português João Lopes de Carvalho, embarcado
encher algum requisito ainda em falta no seu Capa da Historia General y Natural de las Índias, Is- na armada de Fernão de Magalhães .
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extenso curriculum como piloto, uma vez que las y Terra-firme del Mar Océano, do cronista caste- 2. A afirmação de Fernandez de Navarrete
por ocasião do falecimento de Gonçalo Álva- lhano Fernandez de Oviedo y Valdés. (1756-1844), que logo no início transcrevemos:
res, como aludimos, apenas ocupou o cargo de periência nos assuntos da navegação, para que «Tratando Santa Cruz en su dictámen, […] dice
«patrão da navegação da Índia e mar oceano». os pilotos mais novos pudessem ter as suas re- que se valió para fundarlo del derrotero de Juan de
Como este documento parece referir, julgamos ferências, e aos quais certamente adicionariam Lisbôa, afamado piloto portugués en la carrera de
que este hiato possa ter estado relacionado com os conhecimentos de tudo quanto de impor- la India […]» . 5
qualquer prestação de outros serviços ao rei, tante apreendiam durante as viagens na com- Como se pode constatar, um autor estran-
aparentemente para além daqueles que decor- panhia de pilotos mais experimentados. Nesta geiro refere também a existência de documen-
riam da sua profissão de piloto, ou seja, levar os perspectiva, faz algum sentido que terminada a tos atribuídos a João de Lisboa, desta feita um
navios da coroa sem percalços até à Índia e ga- compilação de conhecimentos técnicos, o texto «derrotero» da área por onde navegavam. Pese
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rantir o seu retorno em segurança, com a respec- de João de Lisboa fosse copiado, eventualmen- embora já terem passado vinte anos sobre o fa-
tiva carga, na viagem de regresso ao reino. te por alguém desconhecedor da matéria – tal lecimento de João de Lisboa, como veremos
Curiosamente, não há qualquer referência como hoje sabemos que foi –, para que a partir adiante, os seus roteiros ainda se constituíam
noutro documento que atribui novas funções dessa matriz os novos pilotos pudessem aceder como referência.
e as correspondentes tenças ao piloto João de às valiosas informações, tratados e roteiros do 3. O testemunho do cronista castelhano Fer-
Lisboa, a «outras cousas em que foy encarre- decano. Consideramos, por isso, que muito pro- nandez de Oviedo y Valdés (1478-1557), des-
gado por meu seruiço», facto que desde logo vavelmente essa cópia, ou uma outra posterior, crevendo a parte da costa do Brasil, compre-
despertou a nossa atenção. Não sendo conhe- tenha estado na origem do famoso códice que endida entre o Cabo das Correntes e a baía de
cidas outras colecções de tratados e roteiros tão se encontra actualmente guardado na casa-forte Todos-os-Santos, onde se encontra o topónimo
completas sobre as questões da navegação no da Torre do Tombo. Não será demais sublinhar, João de Lisboa, dando nome a um rio nessas pa-
início do século XVI, anteriores àquelas que in- que pela análise da letra do códice, outros es- ragens, tal como vimos anteriormente:
tegram o códice que hoje designamos por Livro tudiosos, nomeadamente Luís de Albuquerque «Desde el Cabo de corrientes hasta la bahia de To-
de Marinharia de João de Lisboa, surgiu no nos- (1917-1992), atribuem-lhe uma data circa 1550. dos Sanctos hay veynte leguas, dentro de la qual bahia
so espírito uma controversa questão. Não terão Dito de outra forma, vinte cinco anos depois da hay algunas isletas. Pero hasta ella en el camino de la
10 AGOSTO 2008 U REVISTA DA ARMADA