Page 266 - Revista da Armada
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daqui em diamte ao dito Fernã d’Afonso por meu pa- loto, ou qualquer outra pessoa, ter alguma vez terreno assaz fértil em empresas pouco rigoro-
tram como era o dito João de Lixboa […]» . visto o seu nome atribuído com tamanha profu- sas. Como argumento, alega-se frequentemente
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Aliás, a data tardia em que é feita a nomeação são como topónimo, na denominação de luga- que João de Lisboa se terá eventualmente limita-
de Fernão de Afonso, encontra-se em conformi- res em paragens tão diversas, a saber: uma angra do a compilar as informações e os escritos que
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dade com a chegada dos navios ao reino , pro- na costa sul atlântica de África, um rio no norte corriam pelas mãos dos pilotos do seu tempo.
venientes da Índia, e que certamente terão trazi- do Brasil, um cabo na região do rio da Prata e Aparentemente aceitável, este fundamento é no
do a notícia da morte de João de Lisboa. uma ilha no Índico. O que em nosso entender entanto falacioso. Se, como pudemos constatar,
Retomando a questão precedente, verifica- poderá significar, no mínimo, que este experi- pela existência de topónimos com o seu nome,
-se existir aqui um critério diferente na nomea- mentado e reputado piloto participou, de forma João de Lisboa participou em grande parte das
ção do piloto Fernão de Afonso para o cargo consistente, em grande parte das expedições viagens de exploração e reconhecimento des-
deixado vago por morte de João de Lisboa, que de reconhecimento e exploração – de Desco- ses e doutros lugares, tanto na costa brasileira
decorre, como se pode constatar, de imediato. brimento, dir-se-ia noutro contexto –, levadas a e africana, como no Índico, e sendo ele autor
De resto, como vimos anteriormente, João de cabo por navios e marinheiros portugueses. No confesso de pelo menos duas partes do docu-
Lisboa, aquando do falecimento de Gonçalo Ál- entanto, levando em linha de conta a informa- mento reunido no códice baptizado com o seu
vares, teve que esperar cerca de três anos para ção contida na documentação que chegou aos nome, por que razão haveria ele, sendo o mais
conseguir esta mesma nomeação. E não restam nossos dias, de entre os locais citados, apenas experimentado piloto da sua época, de se limitar
quaisquer dúvidas, atendendo às inúmeras re- a sua viagem ao rio da Prata se encontra men- a coligir dados e descrições sobre as paragens
ferências apresentadas, que a sua reputação e cionada, ou comprovada. que ele próprio havia descoberto? Que sentido
experiência não estariam em causa. O que de A título estritamente pessoal, nunca tivemos faria, nestas condições, basear as suas instru-
resto só reforça a nossa convic- ções técnicas, das quais depen-
ção, relativamente à tarefa de con- diam a segurança dos navios por
clusão dos tratados e roteiros que si conduzidos, nos conhecimen-
eventual mente D. João III, ou os Arquivo Revista da Armada tos de pilotos seguramente menos
matemáticos da corte, lhe possam experientes?
ter encomendado, como condição Face ao exposto, parece-nos
para que lhe fosse conferida a der- agora muito mais claro que o seu
radeira promoção. contributo para a denominada
Já depois da data em que tudo Náutica e Arte de Navegar não te-
aponta para que tenha ocorrido o nha constituído um acontecimento
seu falecimento, surge uma outra de carácter meramente episódico
referência a este piloto. No entanto, ou acidental. A confirmar-se esta
face à comprovada morte de João nossa convicção, tal facto faria de
de Lisboa, somos obrigados a não João de Lisboa, sem margem para
atribuir grande crédito às palavras O aviso João de Lisboa (1937-1961), mais tarde navio hidrogáfico (1961-1966), qualquer contestação, o mais pro-
de João de Barros (c.1496-1570), o último navio construído no Arsenal da Marinha em Lisboa, e através do qual a eminente piloto de todos os tem-
quando na descrição da viagem da Marinha Portuguesa prestou homenagem a este reputado piloto. pos. O que só poderá encontrar
armada de Nuno da Cunha em 1528, afirma: grandes dúvidas relativamente ao contributo de explicação, quanto a nós, num facto tão simples
«[…] Mas ainda a fortuna o quis neste tam curto João de Lisboa, no desenvolvimento dos conhe- quanto notável. Referimo-nos, concretamente,
caminho tentar, porque João de Lisboa, piloto-mor, o cimentos empíricos da náutica do final do sécu- à sua formação «académica», que seguramen-
foi meter entre muitas ilhas, que eram as que comu- lo XV e início do século XVI. Além do mais, o te o distinguiria dos demais pilotos. E estamos
mente chamam do Cômoro, dizendo ele serem nova- seu nome, para além da referência no conheci- plenamente convencidos que terá sido essa a
mente achadas. As quais passadas com assaz perigo, do «Tratado da agulha de marear», aparece uma característica que fez dele um caso único para
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por razão das grandes correntes, foi meter a nau em segunda vez referido no denominado Livro de a época em que viveu . A sua apetência para
uns ba[i]xos pegados na ilha de Zanzibar, onde correu Marinharia de João de Lisboa, que muitos histo- descrever as costas, portos e ilhas (roteiros), alia-
muito maior risco, não indo já com Nuno da Cunha riadores, reiteradamente, com argumentos va- da a uma grande capacidade para redigir regras
a nau de D. Fernando de Lima, por se apartar da sua gos, consideram não ser da sua autoria. explicando a construção da agulha de marear,
esteira nas correntes das Ilhas do Cômoro […]» . «Trelado de hũ lliuro que foy de João de Lixboa a determinação do seu noroestear/nordestear e
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A avaliar pelo seu percurso profissional, o pilloto que falla de todas as cousas e partes que atee como observar astros em condições favoráveis
cargo de piloto-mor com que João de Barros o presemte sam descubertas e doutras que o nam (tratados) – tendo muitas destas regras começa-
caracteriza João de Lisboa pode indiciar algum sam como ao diamte lomguamẽte vay scripto e este do a ser utilizadas durante os primeiros anos
episódio que tenha ocorrido no Índico, numa lliuro se chama Somario e Repartidor das terras e da sua longa carreira –, tudo isto, dizíamos, só
viagem anterior a 1525. Ou então, alternativa provimcias que sam sabidas asy d’Espanha como encontra justificação num invulgar à-vontade e
que consideramos bem mais credível, um mero de Framça como d’Allemanha como de Levante e de preparação para redigir, explicar e descrever os
equívoco por parte do cronista ou possível refe- Constamtinopla e da terra de Jerusalẽ e da terra de aspectos práticos da sua Arte e do seu dia-a -dia.
rência a um outro João de Lisboa. Promissam e daquy pasa a costa de Guinee e Imdia Assim, sendo-lhe plenamente reconhecidas
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Apesar da notoriedade do piloto João de Lis- e de Brasyl» . quer a experiência pessoal quer a clareza dos
boa nunca ter sido alguma vez colocada em No entanto, como vimos, alguns indícios nele escritos, não admira que muitos outros pilotos
causa, o certo é que ela, em nossa opinião, contidos, nomeadamente a determinação da procurassem copiar, para si, os ensinamentos do
nunca foi devidamente valorizada. Vimos aqui, altura (latitude) do Cabo de Santa Maria, deno- decano. O que, como vimos, nomeadamente
que os seus tratados de navegação e roteiros, ou tam uma estreita relação com a sua actividade através dos testemunhos castelhanos, seria essa
pelo menos os escritos a ele atribuídos, circula- enquanto piloto. a prática corrente. Nunca o contrário.
vam pela comunidade de pilotos coeva, mesmo Como já tentámos provar noutro forum, os es-
além fronteiras. Além disso, mais de duas déca- critos técnicos relativos à navegação – tratados CRONOLOGIA
das após a sua morte, o seu nome ainda era in- e roteiros –, muitos deles amplamente divulga- Fruto das nossas investigações, e de acordo
vocado, a propósito do diferendo entre Portugal dos durante a sua vida, podem, muito bem, e com as explicações que avançámos, construí-
e Castela sobre os limites territoriais na América em nosso entender, ter sido desenvolvidos pelo mos uma cronologia onde registámos aqueles
do Sul, com base num roteiro daquelas paragens próprio João de Lisboa. Aliás, estamos absolu- que terão sido os principais momentos da vida
consignado a João de Lisboa. tamente convencidos de que será muito mais de João de Lisboa. Em qualquer dos casos, datas
De resto, não nos recordamos de algum pi- difícil provar o contrário, não obstante ser esse há que nos oferecem grandes dúvidas e sobre
12 AGOSTO 2008 U REVISTA DA ARMADA