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daqui em diamte ao dito Fernã d’Afonso por meu pa-  loto, ou qualquer outra pessoa, ter alguma vez  terreno assaz fértil em empresas pouco rigoro-
         tram como era o dito João de Lixboa […]» .  visto o seu nome atribuído com tamanha profu-  sas. Como argumento, alega-se frequentemente
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           Aliás, a data tardia em que é feita a nomeação  são como topónimo, na denominação de luga-  que João de Lisboa se terá eventualmente limita-
         de Fernão de Afonso, encontra-se em conformi-  res em paragens tão diversas, a saber: uma angra  do a compilar as informações e os escritos que
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         dade com a chegada dos navios ao reino , pro-  na costa sul atlântica de África, um rio no norte  corriam pelas mãos dos pilotos do seu tempo.
         venientes da Índia, e que certamente terão trazi-  do Brasil, um cabo na região do rio da Prata e  Aparentemente aceitável, este fundamento é no
         do a notícia da morte de João de Lisboa.  uma ilha no Índico. O que em nosso entender  entanto falacioso. Se, como pudemos constatar,
           Retomando a questão precedente, verifica-  poderá significar, no mínimo, que este experi-  pela existência de topónimos com o seu nome,
         -se existir aqui um critério diferente na nomea-  mentado e reputado piloto participou, de forma  João de Lisboa participou em grande parte das
         ção do piloto Fernão de Afonso para o cargo  consistente, em grande parte das expedições  viagens de exploração e reconhecimento des-
         deixado vago por morte de João de Lisboa, que  de reconhecimento e exploração – de Desco-  ses e doutros lugares, tanto na costa brasileira
         decorre, como se pode constatar, de imediato.  brimento, dir-se-ia noutro contexto –, levadas a  e africana, como no Índico, e sendo ele autor
         De resto, como vimos anteriormente, João de  cabo por navios e marinheiros portugueses. No  confesso de pelo menos duas partes do docu-
         Lisboa, aquando do falecimento de Gonçalo Ál-  entanto, levando em linha de conta a informa-  mento reunido no códice baptizado com o seu
         vares, teve que esperar cerca de três anos para  ção contida na documentação que chegou aos  nome, por que razão haveria ele, sendo o mais
         conseguir esta mesma nomeação. E não restam  nossos dias, de entre os locais citados, apenas  experimentado piloto da sua época, de se limitar
         quaisquer dúvidas, atendendo às inúmeras re-  a sua viagem ao rio da Prata se encontra men-  a coligir dados e descrições sobre as paragens
         ferências apresentadas, que a sua reputação e  cionada, ou comprovada.  que ele próprio havia descoberto? Que sentido
         experiência não estariam em causa. O que de   A título estritamente pessoal, nunca tivemos  faria, nestas condições, basear as suas instru-
         resto só reforça a nossa convic-                                               ções técnicas, das quais depen-
         ção, relativamente à tarefa de con-                                            diam a segurança dos navios por
         clusão dos tratados e roteiros que                                             si conduzidos, nos conhecimen-
         eventual mente D. João III, ou os                                             Arquivo Revista da Armada  tos de pilotos seguramente menos
         matemáticos da corte, lhe possam                                               experientes?
         ter encomendado, como condição                                                   Face ao exposto, parece-nos
         para que lhe fosse conferida a der-                                            agora muito mais claro que o seu
         radeira promoção.                                                              contributo para a denominada
           Já depois da data em que tudo                                                Náutica e Arte de Navegar não te-
         aponta para que tenha ocorrido o                                               nha constituído um acontecimento
         seu falecimento, surge uma outra                                               de carácter meramente episódico
         referência a este piloto. No entanto,                                          ou acidental. A confirmar-se esta
         face à comprovada morte de João                                                nossa convicção, tal facto faria de
         de Lisboa, somos obrigados a não                                               João de Lisboa, sem margem para
         atribuir grande crédito às palavras   O aviso João de Lisboa (1937-1961), mais tarde navio hidrogáfico (1961-1966),   qualquer contestação, o mais pro-
         de João de Barros (c.1496-1570),   o último navio construído no Arsenal da Marinha em Lisboa, e através do qual a   eminente piloto de todos os tem-
         quando na descrição da viagem da   Marinha Portuguesa prestou homenagem a este reputado piloto.  pos. O que só poderá encontrar
         armada de Nuno da Cunha em 1528, afirma:  grandes dúvidas relativamente ao contributo de  explicação, quanto a nós, num facto tão simples
           «[…] Mas ainda a fortuna o quis neste tam curto  João de Lisboa, no desenvolvimento dos conhe-  quanto notável. Referimo-nos, concretamente,
         caminho tentar, porque João de Lisboa, piloto-mor, o  cimentos empíricos da náutica do final do sécu-  à sua formação «académica», que seguramen-
         foi meter entre muitas ilhas, que eram as que comu-  lo XV e início do século XVI. Além do mais, o  te o distinguiria dos demais pilotos. E estamos
         mente chamam do Cômoro, dizendo ele serem nova-  seu nome, para além da referência no conheci-  plenamente convencidos que terá sido essa a
         mente achadas. As quais passadas com assaz perigo,  do «Tratado da agulha de marear», aparece uma  característica que fez dele um caso único para
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         por razão das grandes correntes, foi meter a nau em  segunda vez referido no denominado Livro de  a época em que viveu . A sua apetência para
         uns ba[i]xos pegados na ilha de Zanzibar, onde correu  Marinharia de João de Lisboa, que muitos histo-  descrever as costas, portos e ilhas (roteiros), alia-
         muito maior risco, não indo já com Nuno da Cunha  riadores, reiteradamente, com argumentos va-  da a uma grande capacidade para redigir regras
         a nau de D. Fernando de Lima, por se apartar da sua  gos, consideram não ser da sua autoria.  explicando a construção da agulha de marear,
         esteira nas correntes das Ilhas do Cômoro […]» .  «Trelado de hũ lliuro que foy de João de Lixboa  a determinação do seu noroestear/nordestear e
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           A avaliar pelo seu percurso profissional, o  pilloto que falla de todas as cousas e partes que atee  como observar astros em condições favoráveis
         cargo de piloto-mor com que João de Barros  o presemte sam descubertas e doutras que o nam  (tratados) – tendo muitas destas regras começa-
         caracteriza João de Lisboa pode indiciar algum  sam como ao diamte lomguamẽte vay scripto e este  do a ser utilizadas durante os primeiros anos
         episódio que tenha ocorrido no Índico, numa  lliuro se chama Somario e Repartidor das terras e  da sua longa carreira –, tudo isto, dizíamos, só
         viagem anterior a 1525. Ou então, alternativa  provimcias que sam sabidas asy d’Espanha como  encontra justificação num invulgar à-vontade e
         que consideramos bem mais credível, um mero  de Framça como d’Allemanha como de Levante e de  preparação para redigir, explicar e descrever os
         equívoco por parte do cronista ou possível refe-  Constamtinopla e da terra de Jerusalẽ e da terra de  aspectos práticos da sua Arte e do seu dia-a -dia.
         rência a um outro João de Lisboa.  Promissam e daquy pasa a costa de Guinee e Imdia  Assim, sendo-lhe plenamente reconhecidas
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           Apesar da notoriedade do piloto João de Lis-  e de Brasyl» .        quer a experiência pessoal quer a clareza dos
         boa nunca ter sido alguma vez colocada em   No entanto, como vimos, alguns indícios nele  escritos, não admira que muitos outros pilotos
         causa, o certo é que ela, em nossa opinião,  contidos, nomeadamente a determinação da  procurassem copiar, para si, os ensinamentos do
         nunca foi devidamente valorizada. Vimos aqui,  altura (latitude) do Cabo de Santa Maria, deno-  decano. O que, como vimos, nomeadamente
         que os seus tratados de navegação e roteiros, ou  tam uma estreita relação com a sua actividade  através dos testemunhos castelhanos, seria essa
         pelo menos os escritos a ele atribuídos, circula-  enquanto piloto.   a prática corrente. Nunca o contrário.
         vam pela comunidade de pilotos coeva, mesmo   Como já tentámos provar noutro forum, os es-
         além fronteiras. Além disso, mais de duas déca-  critos técnicos relativos à navegação – tratados  CRONOLOGIA
         das após a sua morte, o seu nome ainda era in-  e roteiros –, muitos deles amplamente divulga-  Fruto das nossas investigações, e de acordo
         vocado, a propósito do diferendo entre Portugal  dos durante a sua vida, podem, muito bem, e  com as explicações que avançámos, construí-
         e Castela sobre os limites territoriais na América  em nosso entender, ter sido desenvolvidos pelo  mos uma cronologia onde registámos aqueles
         do Sul, com base num roteiro daquelas paragens  próprio João de Lisboa. Aliás, estamos absolu-  que terão sido os principais momentos da vida
         consignado a João de Lisboa.       tamente convencidos de que será muito mais  de João de Lisboa. Em qualquer dos casos, datas
           De resto, não nos recordamos de algum pi-  difícil provar o contrário, não obstante ser esse  há que nos oferecem grandes dúvidas e sobre

         12  AGOSTO 2008 U REVISTA DA ARMADA
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