Page 335 - Revista da Armada
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PATRONO DO NOVO CURSO DA ESCOLA NAVAL



                             Fernando Oliveira
                             Fernando Oliveira

                                           (c. 1507-1582?)
                                            (c. 1507-1582?)


                 ilólogo como João de Barros, aventureiro como Fernão  a uma análise mais rigorosa revelam-nos uma personagem fora de
                 Mendes Pinto, perseguido pela Inquisição como Damião  série. Só um indivíduo com um espírito astuto, uma personalidade
         «Fde Goes, navegador como D. João de Castro, porventura  forte, uma elevada firmeza nas suas convicções e uma inteligência no-
         o único dos escritores de arquitectura naval do seu tempo e do seu  tável se atreveria, naquela época, a questionar situações com as quais
         país, ele tem além disso para recomendá-lo à consideração da poste-  não concordava. Por outro lado, aproveitou os períodos em que este-
         ridade uma vida tão cortada de peripécias, que constitui um verda-  ve preso para escrever várias obras, todas manuscritas: a Ars nautica,
         deiro romance.»                                      o Livro da Fabrica das Naos e a Hestorea de Portugal.
           As palavras anteriores foram escolhidas por Teixeira da Mota para   A Ars Náutica, de c. 1570, é um tratado enciclopédico sobre náuti-
         a breve biografia de Fernando de Oliveira incluída na Portugaliæ Mo-  ca, cartografia, instrumentos náuticos e teoria da navegação em geral,
         numenta Cartographica.                               na primeira parte; arquitectura naval, na segunda; organização e lo-
           Fernando Oliveira nasceu em Gestosa,                                   gística da marinha, na terceira; abordan-
         na Beira Alta, c. de 1507. Aos 10 anos foi                               do a guerra naval, num opúsculo final. A
         estudar para o convento de São Domin-                                    extensão e profundidade de tratamento
         gos em Évora, onde se manteve até per-                                   destas matérias não têm paralelo na lite-
         to dos 25 anos, onde adquiriu a cultura                                  ratura europeia do seu tempo, mas não é
         humanista patente nos seus escritos. Em                                  um livro técnico. Sendo escrito em latim
         1532 vai para Espanha, por motivos que                                   destinava-se aos humanistas, que se in-
         se desconhecem, mas poucos anos volvi-                                   teressavam por aqueles assuntos, e não
         dos volta a Portugal, dedicando-se ao en-                                os homens do mar. Pedro Nunes é alvo
         sino das primeiras letras a filhos de perso-                              de críticas cerradas neste texto, provavel-
         nalidades ilustres. Em 1536 publica a sua                                mente, devido a uma conflitualidade pes-
         primeira obra impressa, a Grammatica da                                  soal, embora o seu nome nunca apareça
         Lingoagem Portuguesa.                                                    citado directamente.
           Nos anos seguintes Oliveira volta a sair                                 O Livro da Fábrica das Naus, composto
         de Portugal. Embarcou de Barcelona para                                  cerca de 1580, que ficou inacabado, é o
         Génova, num navio que foi depois apre-                                   primeiro texto escrito em português sobre
         sado pelas galés francesas, ficando prisio-                               arquitectura naval. Trata-se de uma obra
         neiro. Em 1542 regressou a Portugal com                                  notável a nível europeu. A sua intenção
         o novo Núncio Apostólico. Durante este                                   era a de enunciar os preceitos gerais da
         período passou de prisioneiro de guer-                                   arte em princípios claros e ordenados.
         ra a piloto das galés francesas. Tal ates-                               Porém o carácter técnico do livro sugere
         ta a sua enorme competência em termos                                    que o mesmo não se destinava aos deten-
         de conhecimentos na Arte de Navegar,                                     tores do ofício. Por esse motivo considera-
         sendo mais tarde  requerido novamente                                    -se que o texto teria um carácter eminen-
         o seu serviço a bordo de navios france-                                  temente teórico, afastado do que seria a
         ses. A esquadra de galés francesas vinda                                 prática concreta dos estaleiros. Mas as úl-
         do Mediterrâneo passou por Lisboa em                                     timas campanhas de escavação subaquá-
         1545, em direcção à Mancha, para se jun-                                 tica indiciam que Fernando Oliveira não
         tar ao resto da armada. Oliveira embar-                                  estava muito longe da realidade, como
         cou como piloto numa galé que no ano                                     inicialmente se pensou.
         seguinte foi apresada por navios ingleses, ficando ele prisioneiro.   As décadas finais da sua vida são obscuras. Sabe-se que nos anos 70
         Em 1547 regressa a Portugal, portador de uma missiva do monarca  do século XVI continuava a ser disputado como piloto, por franceses
         inglês para D. João III.                             e castelhanos, mas é provável que não tenha saído de Portugal. Certa-
           Em 1552, talvez como capelão, incorpora a armada enviada por  mente estava no país em 1580, pois manifestou a sua  discordância com
         D. João III a auxiliar o destronado rei de Velez, no Norte de África. A  a união das coroas ibéricas, escrevendo para o efeito uma História de Por-
         expedição resulta num rotundo fracasso, sendo aprisionados todos  tugal. Nela pretende legitimar o direito à independência de Portugal. Por
         os participantes. Oliveira é um dos cativos que regressa a Portugal  exemplo, o milagre de Ourique, contestado na Arte da Guerra, é agora
         para negociar os resgates. Relatou o episódio na Arte da Guerra do  recuperado em reforço da causa que animou o seu escrito de História. É
         Mar, publicada em 1555. Esta foi uma obra inovadora no panorama  possível que tivesse sobrevivido até 1585, podendo depreender-se essa
         europeu, embora não tenha tido grande projecção internacional. É  asserção de uma crítica a um livro publicado nesse ano.
         um verdadeiro tratado da guerra naval, versando tanto os aspectos   Terminamos como começámos, citando Teixeira da Mota:
         teóricos como práticos da questão. Alguns passos do livro tornaram-  «O irrequieto sacerdote foi, sem dúvida, um dos portugueses mais
         -se muito conhecidos, como aquele em que nega o milagre de Ou-  versáteis do século XVI, verdadeiro precursor de várias ideias. Culti-
         rique, facto registável pela primeira vez num autor português em  vou os clássicos da antiguidade e embrenhou-se na teologia na gra-
         obra impressa no século XVI.                         mática e na retórica – mas ao mesmo tempo conviveu de perto com
           Personagem controversa, não se inibia de expressar as suas opini-  marinheiros, escrevendo um conjunto de obras que abrangem todos
         ões e criticar situações que considerava menos correctas, não recean-  os ramos da vida do mar no seu tempo. Não será exagero afirmar que
         do criticar personagens influentes. Por esse motivo foi preso diversas  foi o maior tratadista naval português de todos os tempos, e o mais
         vezes. Estas situações, à primeira vista negativas, quando submetidas  completo na Europa do século XVI».  Z
                                                                                     REVISTA DA ARMADA U NOVEMBRO 2008  9
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