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A MARINHA DE D. JOÃO III (41)
Guerra e diplomacia com a pimenta do Malabar
Guerra e diplomacia com a pimenta do Malabar
orge Cabral foi mais um dos muitos fi- particularmente os portugueses porque as gressar a Goa. Deixou, contudo, instruções es-
dalgos que prestaram serviço no Oriente naus carregavam naquele porto uma merca- peciais à esquadra do Malabar para atacar os
Jdurante décadas, acumulando uma vas- doria que vinha do sertão, alimentando um interesses do Samorim, e colocou uma armada
ta experiência sobre todas as nuances da ad- comércio que era o fulcro da política da co- de oito navios, sob o comando de Fernão Ro-
ministração portuguesa e do relacionamento roa no Oriente. Obrigava a diplomacia que se drigues Castello Branco, para assolar a costa
com os múltiplos poderes locais. Durante a mantivesse a amizade com o rei de Cochim, a sul de Panane, onde se concentravam as for-
década de vinte encontramo-lo nas Molucas, desenvolvendo as necessárias influências (e ças inimigas. Quando o “Príncipe da Pimenta”
Malaca, Golfo Pérsico, no cerco de Diu e, natu- pressões) para que se mantivessem sujeitos a saiu de Calecut e se refugiou numa pequena
ralmente, em todo o resto da Índia cumprindo ele os principais produtores de pimenta. Era ilha a norte de Cochim, designada pelos cro-
as mais variadas missões. Passou por Lisboa, necessária uma política de equilíbrio diplo- nistas portugueses como ilha de Bardela (é di-
na primeira metade dos anos trinta, mas re- mático entre pequenos potentados que – de fícil identificá-la com clareza, mas tudo indica
gressou em 1535, levando consigo a sua mu- forma directa ou indirecta – precisavam da ser uma das ilhas baixas a norte da barra, hoje
lher, Lucrécia Borges, o que não deixa de ser protecção portuguesa porque a sua subsis- separadas do oceano por um dique), Francis-
uma atitude inédita na nobreza portuguesa tência dependia do escoamento marítimo da co Silva decidiu atacá-lo e prendê-lo, obrigan-
que buscava fortuna no Oriente. do-o à obediência que devia ao
Dª Lucrécia viveu na fortaleza de rei de Cochim. Acontece que ele
Baçaim e foi a primeira esposa de foi abatido acidentalmente logo
um governador da Índia que ocu- no primeiro embate, e essa perda,
pou a residência oficial em Goa. em vez de desmoralizar as suas
Sabendo ainda em Junho de tropas acicatou ainda mais os âni-
1549 que as cartas de sucessão mos. Debaixo de uma chuva di-
apontavam o seu nome para su- luviana, que apagava os morrões
ceder a Garcia de Sá, só em Agos- das espingardas, os portugueses
to conseguiu aprontar uns quan- deixaram-se surpreender por um
tos navios ligeiros, que à força violento contra-ataque que ceifou
de remo conseguiram levá-lo a a vida ao capitão e a vários outros
Goa, onde chegou entre 11 e 15 de fidalgos; e uma missão que parecia
Agosto. Foi recebido com as hon- simples, complicou-se subitamen-
ras e festividades que eram nor- te, com perdas nacionais de vul-
mais, nestas circunstâncias, e des- to, e com o Samorim a aproveitar
pachou, de imediato, um conjunto a morte do seu novo aliado para
de assuntos pendentes. O primei- invadir o território de Cochim,
ro deles era nomear alguém que o numa altura do ano em que não
substituísse no cargo que acabara era fácil receber reforços por mar,
de deixar, recaindo a escolha em devido aos rigores da monção.
Francisco Barreto. A monção de Podia repetir-se, de certo modo,
sudoeste estava a chegar ao fim e o que sucedera em 1503, quando
havia um conjunto de coisas que Duarte Pacheco Pereira ficou iso-
era necessário levar a cabo, logo lado na região lagunar, resistindo
que terminassem a chuvas e os desesperadamente aos sucessivos
temporais. Uma delas era dar pro- “Fragmento de um mapa da zona sul da Índia, datado de 1744, da autoria do grava- ataques dos guerreiros de Calecut.
vimento à esquadra do Malabar, dor Emanuel Bowen, onde é possível identificar a costa do Malabar, com alguns dos O governador soube do que esta-
que seguiu com doze navios, e ou- topónimos que estiveram ligados à presença portuguesa e aos conflitos ocorridos du- va a acontecer, ainda em Julho,
tra era acudir de novo às Molucas, rante o governo de Jorge Cabral.” mas não podia deixar Goa numa
sobre que corriam novos rumores de que mais sua produção. A alternativa era a formação altura em que se aguardava a chegada da es-
uma armada castelhana demandava aquelas de alianças contra Portugal, entrando nos cir- quadra do reino, onde viria, certamente, um
ilhas. Para ali partiu, em Abril do ano seguin- cuitos paralelos que canalizavam a especiaria novo governador. À falta de notícias dos na-
te, D. Rodrigo de Menezes “com cinco navios para o Mar Vermelho, quase sempre com o vios de Lisboa, partiu, finalmente, no final de
grossos” guarnecidos com 300 homens, com apoio velado do Samorim e dos mapillas (mu- Outubro, dispondo-se a atacar a ilha de Bar-
“muitas munições, roupas e outros provimen- çulmanos) de Calecut, mas isso significava a dela, onde já estavam conluiados vários reis
tos”. Eram informações sem fundamento, mas guerra e a instabilidade. do Malabar, aliados de Calecut e desagrada-
todo o cuidado era pouco. De início, o conflito não parecia ser comple- dos com a atitude do rei de Cochim. Alguns
O problema mais grave que Jorge Cabral xo, mas rapidamente ganhou proporções qua- deles velhos amigos dos portugueses. O ata-
teria de resolver durante o seu curto mandato se incontroláveis, porque o rei de Cochim não que foi, contudo, suspenso por ordem expres-
como governador da Índia seria no Malabar, estava disposto a perder aquela vassalagem, sa de D. Afonso de Noronha, o novo Vice-Rei
exactamente onde se produzia a pimenta que contando com a colaboração de Francisco Sil- da Índia que chegava do reino e mandava
carregava os navios das esquadras que iam e va, capitão da fortaleza. O próprio governa- notícias de Coulão, onde se encontrava. Mas
vinham de Lisboa para esse efeito. Mais uma dor, Jorge Cabral, se deslocou ao Malabar para da sua atribulada viagem e do que se seguiu
vez era um conflito que envolvia o Samorim reforçar a posição portuguesa, mas não teve daremos notícia na próxima revista.
de Calecut e o rei de Cochim, neste caso com uma noção clara da borrasca que aí vinha e, Z
o chamado “Príncipe da Pimenta” no meio. quando viu as naus carregadas de pimenta e J. Semedo de Matos
Estes problemas eram cíclicos e afectavam a estação seca a chegar ao fim, acabou por re- CFR FZ
16 JANEIRO 2009 U REVISTA DA ARMADA