Page 237 - Revista da Armada
P. 237
PIRATARIA MARÍTIMA – UMA PERSPECTIVA ACTUAL
Reflexões sobre o combate à pirataria no séc. XXI
Reflexões sobre o combate à pirataria no séc. XXI
A o problema da pirataria se resolverá. A solução do trados em cerca de 3 minutos, sendo que habitual-
pirataria faz parte do imaginário cinemato-
gráfico associado a séculos passados mas, na
problema deverá passar por duas linhas de acção
mente não excedem 15 minutos. Isso corresponde a
realidade, nunca desapareceu totalmente. O
é minímo, razão pela qual é requerida uma eleva-
cional para o state building na Somália, que miti-
que sucedia é que a maior parte dos ataques verifi- concorrentes: um esforço da comunidade interna- dizer que o tempo de reacção dos navios de guerra
cados nas décadas mais recentes ocorria na Ásia – gue as causas socioeconómicas que estão na raiz da densidade de navios de guerra para que possam
relativamente longe dos olhares ocidentais. No en- da pirataria, e um efectivo patrulhamento dos ma- intervir atempadamente.
tanto, este cenário mudou nos últimos anos. res, que dissuada os ataques, fazendo os piratas per- Neste momento, já existem alguns navios mer-
Por um lado, Indonésia, Singapura e Malásia as- ceber que os riscos que correm são superiores aos cantes que se juntam em pequenos grupos, de
sociaram-se, a partir de 2004, em patrulhas triparti- potenciais benefícios. forma a atravessarem, em companhia, o corredor
das e a pirataria diminuiu drasticamente no estreito No entanto, na actual conjuntura geo-estratégica, de tráfego estabelecido no Golfo de Adem, habi-
de Malaca, no estreito de Singapura, na Indonésia em que os EUA, bem como a NATO e a maioria dos tualmente sob cobertura dos navios de guerra aí
e na Malásia. países europeus, estão profundamente envolvidos presentes. No entanto, os operadores mercantes
Por outro lado, em África (no Golfo da Guiné e, na construção de Estados viáveis no Afeganistão e têm mostrado relutância em organizar comboios
sobretudo, na costa da Somália – mais perto por- no Iraque, não parece haver capacidade disponível de grande dimensão, para serem escoltados por
tanto dos olhares ocidentais), tem-se assistido a para uma intervenção de state building na Somália. navios de guerra, tal como sucedeu na 2ª guerra
um aumento significativo da pirataria. No ano de Recorde-se que os EUA tentaram uma intervenção mundial. Tal deve-se fundamentalmente a dois mo-
2008, 40% dos ataques relatados em todo o Mun- terrestre na Somália, em 1993, no tempo da admi- tivos principais. Em primeiro lugar, isso obrigaria
1
do ocorreu no Corno de África, sendo importan- nistração Clinton, tendo retirado pouco depois na os navios a terem que se sujeitar aos horários dos
te referir que a actividade pirata nesta comboios, o que poderia obrigá-los a
área oscila, em grande medida, ao rit- esperar largas horas, já que para este
mo das monções. Dessa forma tem-se sistema ser eficiente a frequência dos
verificado que os ataques piratas au- comboios não poderia ser muito eleva-
mentam nos períodos entre monções, da (eventualmente diária). Em segundo
i.e. em Abril / Maio e em Outubro / lugar, obrigaria todos os navios a na-
Novembro. Trata-se de uma área ex- vegar à velocidade do navio mais len-
tremamente sensível, representando a to do comboio, provocando naturais
principal rota comercial entre a Euro- atrasos. No entanto, em caso de agra-
pa e a Ásia, facto ilustrado pelos mais vamento do problema da pirataria, não
de 33.000 navios que passam todos é de excluir que a indústria do trans-
os anos no Golfo de Adem. Em 2009, porte marítimo reveja as suas reservas
a pirataria intensificou-se ainda mais, à navegação em comboio.
com o número de ataques relatados Finalmente, gostaria de referir que,
nos primeiros 3 meses do ano a du- apesar da sua complexidade, as mari-
plicar os valores de 2008. nhas em geral, e a Marinha Portuguesa
Face a esta realidade poder-se-ia O helicóptero orgânico das fragatas portuguesas é fundamental no combate em particular, estão preparadas para en-
pensar que a indústria do transporte à pirataria. frentar este problema. A maior limitação
marítimo adoptasse uma rota alternativa, contor- sequência do célebre caso da queda de dois Black acaba por resultar dos condicionamentos legais, tra-
nando África, em vez de seguir o atalho do Golfo Hawk, em Mogadíscio. tados em artigo à parte. De qualquer maneira, é in-
de Adem / Mar Vermelho / Canal do Suez. No en- Neste enquadramento, parece claro que a melhor dubitável que a presença das marinhas de guerra no
tanto, apesar da ameaça de pirataria, os operadores forma que a comunidade internacional tem para li- Corno de África é essencial para dissuadir esta acti-
mercantes continuam a preferir a rota do Corno de dar com este problema é o reforço do patrulhamento vidade, que tão grandes implicações pode vir a ter
África. Tal deve-se sobretudo a 2 motivos. por navios de guerra. Isto mesmo foi percebido pela no dia-a-dia de cada um de nós. Os prejuízos anuais
Em primeiro lugar, a circum-navegação de Áfri- NATO, pela UE, e por paises como a China, os EUA, causados, actualmente, pela pirataria foram estima-
ca corresponde a um acréscimo na distância a per- o Japão e a Rússia, entre outros, que enviaram forças dos em 12 mil milhões de euros, parte dos quais já
correr que pode chegar a cerca de 5.000 milhas navais ou navios para a área. estará a ser suportada pelos consumidores. No en-
náuticas, o que significa que um navio mercante a Estarão na área cerca de 40 navios de guerra, o que tanto, este valor multiplicar-se-á, com um impacto
12 nós demoraria mais 17 dias a fazer o percurso mostra bem a importância que os países desenvolvi- inimaginável nos preços de muitos bens, se a comu-
entre a Ásia e a Europa e vice-versa. Se tal viesse a dos estão a atribuir a esta questão, pelas implicações nidade internacional não conseguir pôr um travão à
acontecer, os custos do transporte marítimo aumen- que está a ter (e poderá ainda vir a ter) na economia pirataria somali.
tariam significativamente, o que teria um impacto mundial. No entanto, este número é ainda insuficien- Z
enorme não só na indústria marítima, mas também te, principalmente por duas ordens de razões: pela Nuno Sardinha Monteiro
e inevitavelmente no consumidor final, que veria os vastidão da área de actuação dos piratas e pela rapi- CFR
preços da maioria dos bens a aumentar. dez com que eles executam os ataques. Notas
1 Segundo algumas fontes, o número de ataques re-
Em segundo lugar, embora estejamos a assistir a Relativamente à área de actuação, importa referir latados oscilará entre 10% a 50% do número de ata-
um aumento de ataques, a percentagem de incidên- que só para patrulhar eficazmente o Golfo de Adem ques real. De facto, os operadores evitam, sempre que
cia ainda é relativamente baixa face ao elevadíssimo (que tem uma área de cerca de 100 mil milhas qua- podem, comunicar às autoridades que foram alvo de
número de navios que passam na área. dradas) se estima serem necessários cerca de 60 na- um ataque pirata, pois isso pode implicar um aumento
2
Dessa forma, os operadores preferem o risco de vios , sendo que os piratas estão a actuar cada vez dos prémios de seguro e uma paragem do navio, para
ter que pagar um resgate aos piratas, no caso de se- mais longe da costa e com crescente violência. Já que as autoridades investiguem a ocorrência.
2 Embora os 40 navios de guerra presentes na área já
rem alvo de ataque (possibilidade, apesar de tudo, houve ataques e tentativas de ataques a cerca de 700 estejam a conseguir excelentes resultados, quase erra-
não muito elevada), à alternativa de circum-navegar milhas da costa e, inclusive, em latitudes abaixo das dicando a pirataria no Golfo de Adem e obrigando os
África e tornarem-se menos competitivos no mer- Seicheles. Isso significa que a área de actuação dos pi- piratas a procurar outras áreas para actuarem.
cado global. ratas somalis extravasou do Golfo de Adem e da costa
Parece assim evidente que o tráfego marítimo da Somália para quase todo o Índico ocidental. Agradecimento
Agradeço os comentários e contributos do CMG Novo
continuará a passar pelo Corno de África, pelo que Relativamente à rapidez de execução dos ata- Palma, do CFR Neves Correia, do CFR Portela Guedes e do
não será pela ausência de potenciais vítimas que ques, cabe referir que há relatos de ataques perpe- CFR Cortes Lopes.
REVISTA DA ARMADA U JULHO 2009 19