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HISTÓRIAS DA BOTICA (66)



             O fotógrafo e os retratos da alma…
             O fotógrafo e os retratos da alma…

             empre gostei de fotografia. Desde muito  perdido o interesse”, afirmou de um ápice,  – então deixou de fotografar? Parecia quase
             pequeno usei uma máquina velha que o  como se as palavras lhe azedassem a boca,  incrível. A medo lá lhe arranquei. Tinha sido
         Smeu pai nos ofereceu. Lembro-me que  lá no mundo solitário em que agora parecia  o divórcio. Estava separado e em processo
         usava uma espécie de cartuchos, que se en-  estar…Deixei-o ir, mas fiquei curioso, pois  contencioso pela custódia partilhada de um
         viavam para revelar. Tínhamos que ser par-  deixar perder um artista daqueles parecia  único filho…O processo arrastava-se pelo
         cimoniosos, pois a fotografia era cara e cada  uma grande pena…        tribunal, já há vários anos…tinha perdido o
         “click” do obturador tinha que fazer a dife-  Ao outro dia o Fotógrafo voltou. Trazia  interesse pela vida e consequentemente pelo
         rença...Guardo muitas das fotos desse tem-  uns exames que alguém lhe tinha pedido.  seu hobby de sempre, a fotografia…
         po...Desse tempo, ainda, aprendi que para  Não estavam bem, ele estava preocupado.   Cada um de nós será lembrado pela sua
         fazer uma boa fotografia há que saber esco-  Lá lhe dei uns comprimidos, mas avisei que  arte e esta parece passar muitas vezes des-
         lher a luz e que a fotografia, que é apenas  enquanto a mente estivesse mal, o corpo iria,  percebida mas está lá, sempre esteve ao lon-
         um momento, depende disso mesmo de um  naturalmente, atrás – uma verdade que com-  go da humanidade e – acredito eu profunda-
         simples momento. E, através da fotografia,  provo insistentemente. Nesse dia insisti com  mente – sempre fez a diferença. A arte foi e
         sabemos todos, há momentos que vão durar  ele para que, em visita posterior, me trouxes-  será sempre uma forma do homem, mesmo
         toda uma eternidade. É essa a principal força  se cópia da minha velha fotografia – sim, a  o mais poderoso, se elevar acima de si pró-
         desta arte e de alguns dos seus artistas...  que estivera exposta no Detalhe, já faz muito  prio. A arte supera toda a fadiga, toda a dor.
           Nunca tive igual interesse pelo vídeo em  tempo…Saiu calado mais uma vez…  Faz, neste nosso tempo (ampliado até qua-
         movimento. Pois no vídeo é mais difícil eter-  Passadas cerca de três semanas, lá estava  se ao infinito pela máquina gigantesca dos
         nizar a luz e o silêncio, que caracterizam os  ele, vinha mostrar novos exames. Desta fez  média), de homens banais verdadeiros deu-
         momentos que guardamos na alma e nos  tirou do envelope um CD e uma cópia digital  ses como é o caso de certos futebolistas e de
         moldam a vida. Como eu existem muitos  da foto de um jovem médico naval, onde já  certos músicos de rock… Por isto era preciso
         marinheiros, com muito mais jeito e arte para  quase me não reconheci. Elogiei-lhe a foto-  avisar o Fotógrafo - Precisamente porque a
         esta técnica. Houve até concursos de foto-  grafia (porque de facto está excelente). Per-  sua vida parecia um imbróglio sem resolu-
         grafia a bordo de navios onde embarquei.  guntei-lhe pela máquina, afirmou que ain-  ção é  que era preciso que não deixasse de
         Lembro-me particularmente de um deles a  da a tinha – “Por lá perdida…” Finalmente  fotografar. Ainda mais ele que fazia retratos,
         bordo do NRP “Álvares Cabral”, em que me  avancei, com o afinal o que é que se passa  que traziam a alma dos seus sujeitos, mes-
         atribuíram um prémio. Tratava-se de um
         livro de um grande fotógrafo social, de
         renome mundial, Sebastião Salgado. A
         foto premiada, que tenho orgulhosamente
         exposta em casa, demorou cerca de três
         horas a conseguir, pois foi num determi-
         nado pôr do sol, num país da América do
         Sul, mas valeu bem a pena, pois capturou
         aquela ambiência, aquela luz de um fim
         de tarde que muitos partilharam...
           Vem esta introdução a propósito de
         um determinado marinheiro que há mui-
         to tempo havia perdido o rasto. Homem
         com cerca de 35 anos, em tempos de
         olhar muito vivo e sempre agarrado a uma
         máquina fotográfica, apresentava-se ago-
         ra com olhar baço e aspecto algo pesado.
         A tristeza do olhar e o aumento de peso
         disseram-me imediatamente que algo se
         passava de profundo na sua vida. Ele é ar-
         tilheiro e tinha como é habitual, a bordo,
         o encargo do “Detalhe”. Era ainda, por
         vocação, o “fotógrafo” oficial daquele na-
         vio. Gostava em especial de fazer retratos
         e tinha, digamos, um “Detalhe ilustrado”
         com as fotografias de cada um dos mem-
         bros da guarnição. É claro tudo isto era
         feito numa época pré – fotografia digital,
         o que representava compreensivelmente
         muito esforço e determinação.
           Cumprimentou-me com um esboço de
         sorriso. Mandei que se sentasse e come-
         cei exactamente pelas fotos. Quis saber
         o que fazia agora. Respondeu-me que
         havia deixado de fazer retratos, ou qual-
         quer outro tipo de fotografia. – “Tinha

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