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A MARINHA DE D. SEBASTIÃO (1)
O início de um reinado e a teia dos Habsburgos
O início de um reinado e a teia dos Habsburgos
ntes de falar propriamente no início para o mosteiro de Yuste, em Espanha, onde para que a Rainha ficasse com esses encar-
do reinado de D. Sebastião, e das pretendia viver o resto da sua vida, dando gos, “em que seria ajudada por D. Henri-
Acondicionantes da acção política a impressão pública de um retiro espiritual que”. Carlos já estava em Yuste e – como
que decorreram durante esse período, é útil e um abandono de tudo quanto era munda- disse – a regência era exercida por Dª Joa-
rever as condições em que se deu a morte de no ou que tivesse a ver com o exercício do na, que nesse mês enviou um embaixador
D. João III e as vicissitudes ocorridas com poder. Carlos V retirou-se para o mosteiro, a Portugal. Pois em 24 de Junho, antes da
todos os seus filhos, com as dificuldades deixando Filipe em guerra com Henrique notícia oficial do óbito, o velho guerreiro
que isso criou à sucessão. O Rei casou com II de França (o sucessor de Francisco I), e retirado escreveu à filha regente dando-lhe
Dª Catarina, irmã do imperador Carlos V, o governo de Espanha entregue à regên- conselhos sobre a actuação do embaixador
uma figura que dominou quase toda a Eu- cia da sua filha Dª Joana, viúva do último que segue para Portugal, tendo em conta a
ropa, apenas com um oponente de monta filho de D. João III e mãe de D. Sebastião. morte do rei. E, quando a regente, já ciente
em Francisco I de França, que não hesitou Contudo a correspondência que continua a da situação, envia um emissário a Lisboa
em recorrer às mais heterodoxas alianças manter com Filipe, com o irmão, com em- para que apresente as condolências for-
para combater o Império. O rei de Portu- baixadores diversos, secretários, enviados mais e recorde os seus direitos sobre a edu-
gal não poderia ter melhor aliado cação do jovem D. Sebastião, seu
do que este, tanto mais que os inte- filho, Carlos V não deixa que essas
resses marítimos de um e outro lhes cartas sejam entregues: intersecta-
traziam grandes proveitos, interes- -as e altera-as, no sentido de man-
sando-lhes consolidar uma amiza- ter o que já tinha sido decidido pelo
de que, além do mais, selava uma Conselho de Estado português, cer-
complementaridade de interesses e to que estava de que era isso que
– quem sabe – um dia poderia levar convinha ser feito. Dª Catarina seria
ao domínio absoluto do mar e das regente do reino, bem como “tuto-
riquezas ultramarinas do Oriente e ra e curadora” de D. Sebastião, ga-
da América Central. Os dois sobera- rantindo algo que não tinha preço:
nos trabalharam para este objectivo, o equilíbrio necessário para man-
casando cada um deles com a irmã ter a tutela dos Habsburgos sobre o
do outro: Carlos V com Maria de império marítimo português. Algo
Portugal e D. João III com Catarina que a presença de Dª Joana poderia
de Habsburgo. Contudo, os pode- perturbar e que Dª Catarina tinha
res de um e outro só podiam com- condições para manter, com a ajuda
parar-se nas possessões ultramari- de Alcáçova Carneiro e outros fiéis
nas e na capacidade de domínio do servidores espalhados pelas duas
mar, porque a influência e prestígio cortes ibéricas.
do Imperador superava em muito Carlos V foi o grande patriarca
a do rei Português, quando se tra- Habsburgo que estendeu o seu po-
tava de conferenciar no teatro euro- der muito para além dos domínios
peu, junto do Papa ou de qualquer territoriais da sua soberania. Teve
outro soberano. E é importante que D. Sebastião ideias muito claras acerca de Portu-
tenhamos presente a verdadeira di- Cristóvão de Morais gal e, por isso, casou com uma filha
mensão dos poderes em causa, sem Museu Nacional de Arte Antiga de D. Manuel e fez casar D. João III
efabulações de qualquer ordem, para que pes soais, espiões, etc., constitui um vasto com uma irmã sua. Na prática integrou a fa-
se compreenda a política do rei português acervo de centenas de páginas, talvez ainda mília real portuguesa no clã dos Habsbur-
em tudo o que dizia respeito ao seu cunha- não completamente conhecido e estudado. gos – senhores do Mundo avant la lettre – de
do imperador. E podem juntar-se-lhe inúmeras audiências, que ele próprio continuava a ser o grande
E realço estes aspectos – nalguns casos encontros, recados e outras acções políticas patriarca, mesmo estando retirado em Yus-
abordados em revistas anteriores – porque difíceis de contabilizar. te. Quando morreu, em 1558, essas funções
eles se tornaram muito importantes aquan- As comunicações oficiais do óbito de foram assumidas por Filipe II de Espanha,
do da morte de D. João III, a 11 de Junho D. João III foram particularmente tardias, e mesmo tendo em conta que o Imperador in
de 1557, e do processo de atribuição das chegaram à Europa bastante tempo depois nomine do Sacro-Império era o seu tio Fer-
regências e tutelas durante a menoridade de terem sido ajustados todos os pormeno- nando. Há uma hierarquia familiar que se
de D. Sebastião. res sobre o governo de Portugal e sobre a sobrepõe aos poderes estabelecidos e essa
Relembro ainda que Carlos V, depois de educação de D. Sebastião. É bom lembrar hierarquia vai condicionar a História dos
três décadas de guerra por toda a Europa, que Dª Catarina era castelhana e a tradi- povos de Portugal e Espanha, na segunda
renunciou progressivamente aos seus su- ção nacional apontava para que a regência metade do século XVI. Esta será uma das
cessivos poderes que foi passando a seu fi- ficasse na mão do cardeal D. Henrique, ir- condicionantes mais importantes da políti-
lho Filipe e a seu irmão Fernando. Em 1555 mão mais velho do rei. O Conselho de Es- ca portuguesa durante o reinado de D. Se-
abdicou da soberania sobre os Países Baixos tado, contudo, ouviu com atenção os de- bastião, com repercussões na dimensão e
a favor de Filipe II, em 1557 entregou-lhe a sejos expressos pelo rei, comunicados sob utilização do seu Poder Naval.
coroa de Espanha e, no princípio de 1558, juramento pelo secretário Pêro de Alcáço- Z
abdicou do título imperial a favor de seu va Carneiro (o rei não deixou testamento J. Semedo de Matos
irmão Fernando. Retirara-se, entretanto, assinado) e regulou todos os pormenores CFR FZ
REVISTA DA ARMADA U SETEMBRO/OUTUBRO 2009 15