Page 305 - Revista da Armada
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A MARINHA DE D. SEBASTIÃO (1)



          O início de um reinado e a teia dos Habsburgos
          O início de um reinado e a teia dos Habsburgos

               ntes de falar propriamente no início  para o mosteiro de Yuste, em Espanha, onde  para que a Rainha ficasse com esses encar-
               do reinado de D. Sebastião, e das  pretendia viver o resto da sua vida, dando  gos, “em que seria ajudada por D. Henri-
         Acondicionantes da acção política  a impressão pública de um retiro espiritual  que”. Carlos já estava em Yuste e – como
         que decorreram durante esse período, é útil  e um abandono de tudo quanto era munda-  disse – a regência era exercida por Dª Joa-
         rever as condições em que se deu a morte de  no ou que tivesse a ver com o exercício do  na, que nesse mês enviou um embaixador
         D. João III e as vicissitudes ocorridas com  poder. Carlos V retirou-se para o mosteiro,  a Portugal. Pois em 24 de Junho, antes da
         todos os seus filhos, com as dificuldades  deixando Filipe em guerra com Henrique  notícia oficial do óbito, o velho guerreiro
         que isso criou à sucessão. O Rei casou com  II de França (o sucessor de Francisco I), e  retirado escreveu à filha regente dando-lhe
         Dª Catarina, irmã do imperador Carlos V,  o governo de Espanha entregue à regên-  conselhos sobre a actuação do embaixador
         uma figura que dominou quase toda a Eu-  cia da sua filha Dª Joana, viúva do último  que segue para Portugal, tendo em conta a
         ropa, apenas com um oponente de monta  filho de D. João III e mãe de D. Sebastião.  morte do rei. E, quando a regente, já ciente
         em Francisco I de França, que não hesitou  Contudo a correspondência que continua a  da situação, envia um emissário a Lisboa
         em recorrer às mais heterodoxas alianças  manter com Filipe, com o irmão, com em-  para que apresente as condolências for-
         para combater o Império. O rei de Portu-  baixadores diversos, secretários, enviados  mais e recorde os seus direitos sobre a edu-
         gal não poderia ter melhor aliado                                           cação do jovem D. Sebastião, seu
         do que este, tanto mais que os inte-                                        filho, Carlos V não deixa que essas
         resses marítimos de um e outro lhes                                         cartas sejam entregues: intersecta-
         traziam grandes proveitos, interes-                                         -as e altera-as, no sentido de man-
         sando-lhes consolidar uma amiza-                                            ter o que já tinha sido decidido pelo
         de que, além do mais, selava uma                                            Conselho de Estado português, cer-
         complementaridade de interesses e                                           to que estava de que era isso que
         – quem sabe – um dia poderia levar                                          convinha ser feito. Dª Catarina seria
         ao domínio absoluto do mar e das                                            regente do reino, bem como “tuto-
         riquezas ultramarinas do Oriente e                                          ra e curadora” de D. Sebastião, ga-
         da América Central. Os dois sobera-                                         rantindo algo que não tinha preço:
         nos trabalharam para este objectivo,                                        o equilíbrio necessário para man-
         casando cada um deles com a irmã                                            ter a tutela dos Habsburgos sobre o
         do outro: Carlos V com Maria de                                             império marítimo português. Algo
         Portugal e D. João III com Catarina                                         que a presença de Dª Joana poderia
         de Habsburgo. Contudo, os pode-                                             perturbar e que Dª Catarina tinha
         res de um e outro só podiam com-                                            condições para manter, com a ajuda
         parar-se nas possessões ultramari-                                          de Alcáçova Carneiro e outros fiéis
         nas e na capacidade de domínio do                                           servidores espalhados pelas duas
         mar, porque a influência e prestígio                                         cortes ibéricas.
         do Imperador superava em muito                                               Carlos V foi o grande patriarca
         a do rei Português, quando se tra-                                          Habsburgo que estendeu o seu po-
         tava de conferenciar no teatro euro-                                        der muito para além dos domínios
         peu, junto do Papa ou de qualquer                                           territoriais da sua soberania. Teve
         outro soberano. E é importante que   D. Sebastião                           ideias muito claras acerca de Portu-
         tenhamos presente a verdadeira di-  Cristóvão de Morais                     gal e, por isso, casou com uma filha
         mensão dos poderes em causa, sem   Museu Nacional de Arte Antiga            de D. Manuel e fez casar D. João III
         efabulações de qualquer ordem, para que  pes soais, espiões, etc., constitui um vasto  com uma irmã sua. Na prática integrou a fa-
         se compreenda a política do rei português  acervo de centenas de páginas, talvez ainda  mília real portuguesa no clã dos Habsbur-
         em tudo o que dizia respeito ao seu cunha-  não completamente conhecido e estudado.  gos – senhores do Mundo avant la lettre – de
         do imperador.                      E podem juntar-se-lhe inúmeras audiências,  que ele próprio continuava a ser o grande
           E realço estes aspectos – nalguns casos  encontros, recados e outras acções políticas  patriarca, mesmo estando retirado em Yus-
         abordados em revistas anteriores – porque  difíceis de contabilizar.   te. Quando morreu, em 1558, essas funções
         eles se tornaram muito importantes aquan-  As comunicações oficiais do óbito de  foram assumidas por Filipe II de Espanha,
         do da morte de D. João III, a 11 de Junho  D. João III foram particularmente tardias, e  mesmo tendo em conta que o Imperador in
         de 1557, e do processo de atribuição das  chegaram à Europa bastante tempo depois  nomine do Sacro-Império era o seu tio Fer-
         regências e tutelas durante a menoridade  de terem sido ajustados todos os pormeno-  nando. Há uma hierarquia familiar que se
         de D. Sebastião.                   res sobre o governo de Portugal e sobre a  sobrepõe aos poderes estabelecidos e essa
           Relembro ainda que Carlos V, depois de  educação de D. Sebastião. É bom lembrar  hierarquia vai condicionar a História dos
         três décadas de guerra por toda a Europa,  que Dª Catarina era castelhana e a tradi-  povos de Portugal e Espanha, na segunda
         renunciou progressivamente aos seus su-  ção nacional apontava para que a regência  metade do século XVI. Esta será uma das
         cessivos poderes que foi passando a seu fi-  ficasse na mão do cardeal D. Henrique, ir-  condicionantes mais importantes da políti-
         lho Filipe e a seu irmão Fernando. Em 1555  mão mais velho do rei. O Conselho de Es-  ca portuguesa durante o reinado de D. Se-
         abdicou da soberania sobre os Países Baixos  tado, contudo, ouviu com atenção os de-  bastião, com repercussões na dimensão e
         a favor de Filipe II, em 1557 entregou-lhe a  sejos expressos pelo rei, comunicados sob  utilização do seu Poder Naval.
         coroa de Espanha e, no princípio de 1558,  juramento pelo secretário Pêro de Alcáço-                  Z
         abdicou do título imperial a favor de seu  va Carneiro (o rei não deixou testamento      J. Semedo de Matos
         irmão Fernando. Retirara-se, entretanto,  assinado) e regulou todos os pormenores                 CFR FZ
                                                                              REVISTA DA ARMADA U SETEMBRO/OUTUBRO 2009  15
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