Page 390 - Revista da Armada
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Instrumentos na pedra
Instrumentos na pedra
á uns anos atrás li, numa revista inglesa um artigo cujo teceu quando fui ao Cemitério para ver a campa de Rümker e fui
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contexto me pareceu ter interesse para ser divulgado. Não atendido por uma porteira que aparentava uma idade avançada.
Ho fiz e, agora, que me dispus a escrevê-lo, constato que esta “Posso perguntar-lhe a sua idade?” Resposta pronta de Adelina Pi-
minha demora fez com que eu contribuísse, por mero acaso, para a res: “Nasci no ano da República”. Não pode ser, pensei eu, mas a
identificação duma peça que, entretanto, fora roubada. verdade é que a porteira do Cemitério da Estrela, é seguramente a
A história que vou contar começa há longos anos e tem como perso- mais antiga funcionária de uma instituição, a nível Mundial. Aliá s,
nagem principal um alemão de nome Christian Carl Ludwig Rümker. os seus serviços foram reconhecidos pela rainha Isabel II, que lhe
Nascido no ano de 1788, em Stargard, na Alemanha e, por ser dotado conferiu a Ordem do Império Britânico em reconhecimento pelos
para a matemática, vamo-lo encontrar, em 1808, professor desta dis- serviços prestados à comunidade britânica em Lisboa. Foi então
ciplina em Hamburg o. Todavia, que com a ajuda da fotografia
nesse mesmo ano, ou no seguin- apresentada por Julian Holland,
te, decide emigrar para Inglaterra, Fotos Júlio Tito no seu artigo acima mencionado,
que considera o único país livre na Adelina Pires, levou-nos, sem he-
Europa, tendo em vista alistar-se sitação, até à campa de Rümker,
na Royal Navy. para verificar que está negra, de-
Consegue o ingresso na Com- vido à poluição, de um século e
panhia das Índias Inglesas, mas, meio, como aliás se constata na
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certo dia, numa das ruas perto do fotografia do artigo de Holland .
Tamisa, trazendo debaixo do bra- O curioso é que, quando chamei
ço um sextante que tinha acabado à atenção para a figura de
de comprar, é recrutado à força e um anjo, que a fotografia
levado para bordo do H.M.S. Ben- mostrava e não se via so-
bow, onde ensinou matemática e bre a pedra tumular, ela,
navegação, actividade que, aliás, com ar de satisfação, pu-
também exerceu noutros navios. xou-me pelo braço e le-
Durante uma estadia no Mediterrâneo conhece Franz von Zach edi- vou-me a uma pequena
tor da revista Correspondence Astronomique, que o encoraja e publica capela que existe no cemi-
o seu primeiro trabalho. Depois, como aconteceu com outros ofi- tério. Abre a porta e logo
ciais que deixaram a Marinha Inglesa, Rümker vai para Hamburgo me mostra um pequeno e
onde veio a ser professor na Escola de Navegação. Ali é desafiado bonito anjo. “Está aqui!”,
a ir para Parramata, na Austrália, onde ia ser construído um obser- diz-me ela. “Mas porquê
vatório astronómico, o que aceita com entusiasmo, dado que, no he- aqui? E, para mais… res-
misfério Sul, só existia um observatório na cidade do Cabo. Depois taurado?”, perguntei. E,
de muita actividade no campo da astronomia, Rümker acaba por ir conta-me o que aconte-
ocupar, em 1833, o lugar de director do Observatório Astronómico ceu. Disse-me que há al-
de Hamburgo. gum tempo, houve um
Entretanto, em 1832, Rümker tem um filho duma sua empregada assalto ao cemitério ten-
doméstica, com quem não se casa, mas que perfilha com o nome de do desaparecido várias
George Friedrich Wilhem Rümker, que virá a ser um astrónomo de figuras que decoravam
renome e seu sucessor como director do Observatório de Hambur- as campas. Acontece que
go. Em 1848, Rümker casa-se com Mary Ann Crockford, nascida em os ladrões foram apanhados, todas ou quase todas as peças foram
1809: uma astrónoma que tem no seu curriculum a descoberta, no recuperadas e colocadas nos locais apropriados. Apenas uma úni-
ano de 1847, do cometa VI. ca excepção: aquele pequeno anjo por não se
Rümker continua a sua actividade mas, em atinar donde tinha sido retirado. Agora sim,
1857, tem o infortúnio de cair e ficar seriamente vai ficar completa a campa de Rümker graças
injuriado numa perna. Requer a exoneração do à grande força do acaso.
cargo de director do Observatório, que não lhe Antes de terminar quero ainda esclarecer o
é dada por consideração pelos serviços presta- leitor que o Sr. Andrew Swington, director do
dos, recebendo antes uma licença ilimitada. Seu Cemitério, além de me ter dado um excelente
filho substitui-o como director interino. apoio, autorizou a limpeza da campa. Opera-
Esperando que um clima ameno possa ser ção que já foi executada, excepto no que res-
benéfico à saúde, Rümker vem viver para Lis- peita ao anjo, que não foi necessário beneficiar,
boa com a mulher, acabando por falecer a 21 de dado que os salteadores, até serem apanhados,
Dezembro de 1862. O seu corpo ficou deposi- decidiram mandar limpar aquela pequena
tado no Cemitério da Estrela, também chama- imagem e pô-la como nova. Ainda há saltea-
do dos Ingleses. Na pedra tumular lê-se uma dores simpáticos!
pequena biografia de Rümker e noutra pedra Z
levantada, tendo em cima um globo terrestre, António Estácio dos Reis
estão gravados, em baixo relevo, três instru- CMG
mentos: um óculo, um sextante e um relógio. Notas
Presumimos que seja, no nosso país, um caso 1 “Instruments in the Cemetery: Carl Rümker´s Grave
único quanto a referências astronómicas em in Lisbon”, de Julian Holland, Scientific Instrument So-
ciety Bulletin, nº 77, Junho de 2003.
pedras tumulares. 2 Conforme é referido por Holland, a fotografia que apresentou no seu artigo foi
Antes de terminar, gostaria de partilhar com o leitor uma curio- obtida pelo Prof. Bragança Gil, fundador do Museu de Ciência de Lisboa, que
sidade e uma descoberta, esta já atrás anunciada. A primeira acon- faleceu recentemente.
28 DEZEMBRO 2009 U REVISTA DA ARMADA