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HISTÓRIAS DA BOTICA (69)



           A velha ferida…
           A velha ferida…

             e a alma dos homens livres
             e a alma dos homens livres


           “Em dias de vazio encontramo-nos aqui,  tro país cujas intenções em relação a Timor  A omnipresente malária, que ataca grandes
         sem hora marcada. Trazemos na alma ven-  haviam sido pouco claras e já contava com  pequenos e até ricos e poderosos. Guardo
         tos de um local distante em que os homens  vários tratados comerciais com a Indonésia,  também as caras de uns tantos marinheiros
         bons abundavam e a vida não se perdia. Ha-  para a exploração das riquezas marítimas  anónimos, que cresceram mais que a sua
         via um tempo e havia um modo. O mundo  daquela “província” que lhe era vizinha), foi  própria dimensão, numa terra que nunca os
         fazia sentido...”                  escolhida para liderar uma coligação inter-  tinha esquecido...
                                            nacional que iria apoiar a corajosa decisão   Lembro-me, particularmente, das crianças,
                  In Histórias do Mundo e outros contos,
                        livro de autor desconhecido  dos timorenses nas urnas: a autodetermina-  imensas, muitas vezes apenas recém nasci-
                                            ção. A “Vasco da Gama” viria a integrar essa  dos – todas com um olhar bem maior do
         A                                    Os timorenses comuns viviam com grandes  abomén proeminente...o que levou alguém
                                                                               que a idade. Tinham todas o cabelo claro e
              vida tem ironias, que a mente não  missão, conhecida como INTERFET.
              consegue facilmente explicar. Foi as-
                                            dificuldades. Perseguidos, acossados nas suas  no poder, que em determinada ocasião vi-
              sim, por acaso, que do nada me cru-
         zei com uma senhora timorense a viver e a  próprias casas, tinham necessidades de toda a  sitou Manatuto, a afirmar que “havia muito
         trabalhar em Portugal, há relativamente pou-  ordem. Era toda uma humanidade em crise,  cruzamento de raças”, quando na verdade
         co tempo. Tem um trabalho ligado à diplo-  particularmente na alimentação e na saúde.  – avisámos nós – aqueles eram sinais da má
         macia, falava mal o português, que
         está a aprender... Então ocorreu-me
         de forma súbita, passaram  agora
         exactamente dez anos desde que
         parti, eu próprio, para Timor.
           Timor, aquele território longín-
         quo, estava no seu conturbado pro-
         cesso de autodeterminação. Por-
         tugal, que tinha resolvido mal o
         processo de descolonização daque-
         le antiga colónia (particularmente
         na sua consicência colectiva), apre-
         sentava um ambiente abertamente
         pró-Timor. Nomes como Ali Alatas,
         ministro dos negócios estrangeiros
         da Indonésia, eram então voz cor-
         rente, com forte conotação negati-
         va. Ao contrário, manifestações de
         apoio ao Bispo D. Ximenes Belo e
         a Xanana Gusmão, então encarce-
         rado, tinham participação intensa.
         Os Trovante ouviam-se na rádio
         com uma canção pró-Timor, que
         comovia muitos. – Timor unia es-
         querda e direita políticas (consti-
         tuindo, mesmo, concordará o leitor,
         um dos poucos desígnios verdadeiramente  Desse tempo, como em tudo, fixamo-nos nas  nutrição que grassava. Timor era por certo
         nacionais nos últimos tempos).  Neste am-  caras, nas pessoas. Em Timor era fácil, em pri-  um local em que nos sentíamos mal só por
         biente, a Marinha foi chamada a participar,  meiro lugar porque as pessoas, quase todas,  comer. Já que quase todos deixavam a me-
         naquele desígnio nacional, e enviou a Fra-  tinham nomes portugueses de baptismo. Não  renda ás crianças com quem se cruzavam.
         gata “Vasco da Gama”, com honras de Pri-  importava que a grande maioria perdesse todo  Lembro-me em especial de determinado
         meiro Ministro na despedida  (então António  o contacto com a lingua lusa, chamavam-se  piloto de helicóptero daquele navio, que,
         Guterres).  Levava os olhos da nação portu-  António, Pedro, Manuel, José...  Muitas ti-  propositadamente, trazia os bolsos do seu
         guesa postos nas suas acções nos meses que  nham sangue português, como era o caso da  fato de voo cheios de guloseimas, que des-
         estavam para vir...                Senhora Joana. Esta,  senhora – já uma mu-  pejou sobre a minha secretária no Hospital
           O povo de Timor, esse, percebia-se ime-  lher madura - falava um português melhor que  da AMI – nem sei quem saiu mais feliz nes-
         diatamente na chegada, estava em profunda  aquele presente nas ruas de Lisboa de hoje,  se dia, se as crianças, se eu, seria talvez o
         crise. As infraestruturas haviam sido destruí-  filha de pai português, ex – militar do exérci-  próprio piloto...
         das por mílicias de timorenses, orquestra-  to, que nunca voltou ao seu Minho natal. Era   Sei que gostaria de voltar a ver muitas da-
         das pela própria Indonésia. Eram, aliás,  os  a minha tradutora.      quelas caras, que me procuram em noites
         militares indonésios os responsáveis pela   Mas, mais vezes me lembro do sofredor  solitárias, quais fantasmas de um passado
         segurança (quais lobos a guardar ovelhas),  anónimo com que amíude me deparei. Nun-  recente. E estes anos todos volvividos, penso
         permitindo roubos, violações e até assassi-  ca antes tinha feito aquela medicina dita de  que todos os que lá estiveram concordarão:
         natos na maior passividade. A Austrália (ou-  “subsistência”: a febre, a tosse, a diarreia.  a lição que se traz de Timor é a da amizade.

         30  DEZEMBRO 2009 U REVISTA DA ARMADA
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