Page 392 - Revista da Armada
P. 392
HISTÓRIAS DA BOTICA (69)
A velha ferida…
A velha ferida…
e a alma dos homens livres
e a alma dos homens livres
“Em dias de vazio encontramo-nos aqui, tro país cujas intenções em relação a Timor A omnipresente malária, que ataca grandes
sem hora marcada. Trazemos na alma ven- haviam sido pouco claras e já contava com pequenos e até ricos e poderosos. Guardo
tos de um local distante em que os homens vários tratados comerciais com a Indonésia, também as caras de uns tantos marinheiros
bons abundavam e a vida não se perdia. Ha- para a exploração das riquezas marítimas anónimos, que cresceram mais que a sua
via um tempo e havia um modo. O mundo daquela “província” que lhe era vizinha), foi própria dimensão, numa terra que nunca os
fazia sentido...” escolhida para liderar uma coligação inter- tinha esquecido...
nacional que iria apoiar a corajosa decisão Lembro-me, particularmente, das crianças,
In Histórias do Mundo e outros contos,
livro de autor desconhecido dos timorenses nas urnas: a autodetermina- imensas, muitas vezes apenas recém nasci-
ção. A “Vasco da Gama” viria a integrar essa dos – todas com um olhar bem maior do
A Os timorenses comuns viviam com grandes abomén proeminente...o que levou alguém
que a idade. Tinham todas o cabelo claro e
vida tem ironias, que a mente não missão, conhecida como INTERFET.
consegue facilmente explicar. Foi as-
dificuldades. Perseguidos, acossados nas suas no poder, que em determinada ocasião vi-
sim, por acaso, que do nada me cru-
zei com uma senhora timorense a viver e a próprias casas, tinham necessidades de toda a sitou Manatuto, a afirmar que “havia muito
trabalhar em Portugal, há relativamente pou- ordem. Era toda uma humanidade em crise, cruzamento de raças”, quando na verdade
co tempo. Tem um trabalho ligado à diplo- particularmente na alimentação e na saúde. – avisámos nós – aqueles eram sinais da má
macia, falava mal o português, que
está a aprender... Então ocorreu-me
de forma súbita, passaram agora
exactamente dez anos desde que
parti, eu próprio, para Timor.
Timor, aquele território longín-
quo, estava no seu conturbado pro-
cesso de autodeterminação. Por-
tugal, que tinha resolvido mal o
processo de descolonização daque-
le antiga colónia (particularmente
na sua consicência colectiva), apre-
sentava um ambiente abertamente
pró-Timor. Nomes como Ali Alatas,
ministro dos negócios estrangeiros
da Indonésia, eram então voz cor-
rente, com forte conotação negati-
va. Ao contrário, manifestações de
apoio ao Bispo D. Ximenes Belo e
a Xanana Gusmão, então encarce-
rado, tinham participação intensa.
Os Trovante ouviam-se na rádio
com uma canção pró-Timor, que
comovia muitos. – Timor unia es-
querda e direita políticas (consti-
tuindo, mesmo, concordará o leitor,
um dos poucos desígnios verdadeiramente Desse tempo, como em tudo, fixamo-nos nas nutrição que grassava. Timor era por certo
nacionais nos últimos tempos). Neste am- caras, nas pessoas. Em Timor era fácil, em pri- um local em que nos sentíamos mal só por
biente, a Marinha foi chamada a participar, meiro lugar porque as pessoas, quase todas, comer. Já que quase todos deixavam a me-
naquele desígnio nacional, e enviou a Fra- tinham nomes portugueses de baptismo. Não renda ás crianças com quem se cruzavam.
gata “Vasco da Gama”, com honras de Pri- importava que a grande maioria perdesse todo Lembro-me em especial de determinado
meiro Ministro na despedida (então António o contacto com a lingua lusa, chamavam-se piloto de helicóptero daquele navio, que,
Guterres). Levava os olhos da nação portu- António, Pedro, Manuel, José... Muitas ti- propositadamente, trazia os bolsos do seu
guesa postos nas suas acções nos meses que nham sangue português, como era o caso da fato de voo cheios de guloseimas, que des-
estavam para vir... Senhora Joana. Esta, senhora – já uma mu- pejou sobre a minha secretária no Hospital
O povo de Timor, esse, percebia-se ime- lher madura - falava um português melhor que da AMI – nem sei quem saiu mais feliz nes-
diatamente na chegada, estava em profunda aquele presente nas ruas de Lisboa de hoje, se dia, se as crianças, se eu, seria talvez o
crise. As infraestruturas haviam sido destruí- filha de pai português, ex – militar do exérci- próprio piloto...
das por mílicias de timorenses, orquestra- to, que nunca voltou ao seu Minho natal. Era Sei que gostaria de voltar a ver muitas da-
das pela própria Indonésia. Eram, aliás, os a minha tradutora. quelas caras, que me procuram em noites
militares indonésios os responsáveis pela Mas, mais vezes me lembro do sofredor solitárias, quais fantasmas de um passado
segurança (quais lobos a guardar ovelhas), anónimo com que amíude me deparei. Nun- recente. E estes anos todos volvividos, penso
permitindo roubos, violações e até assassi- ca antes tinha feito aquela medicina dita de que todos os que lá estiveram concordarão:
natos na maior passividade. A Austrália (ou- “subsistência”: a febre, a tosse, a diarreia. a lição que se traz de Timor é a da amizade.
30 DEZEMBRO 2009 U REVISTA DA ARMADA