Page 22 - Revista da Armada
P. 22
A MARINHA DE D. SEBASTIÃO (4)
Luís de Camões: um soldado da Índia
Interrompo aqui o fio condutor dado pela ter sido perdoado por D. João III de ter fe- cos em Mascate. Como se sabe já não era o
cronologia dos acontecimentos e das su- rido à espada um seu criado, durante a fes- baptismo de fogo de Luís de Camões – que
cessões nos cargos de governador ou Vi- ta do Santíssimo Sacramento. Embarcou a já defrontara os mouros em Ceuta, onde per-
ce-Rei da Índia para falar de um soldado que 24 de Março na armada de Fernão Álvares dera o olho direito – mas era a sua primeira
partiu para o Oriente com as mesmas espe- Cabral, chegando a Goa em Outubro desse experiência no Oriente.
ranças e sonhos de todos os outros portugue- ano. Governava a Índia o Vice-Rei D. Afon- Chegava, entretanto, o novo Vice-Rei da
ses, regressando 17 anos depois sem for- Índia, D. Pedro de Meneses (Marinha
tuna ou glória. Foi certamente um entre de D. João III (48)), que mandara nova
muitos a quem faltou as artes de merca- armada ao Estreito, sob o comando de
dor, a quem a manha não favoreceu ou Manuel de Vasconcelos, onde embar-
que nunca deixou que se lhe arrefeces- cou, de novo, o poeta. Foi uma jor-
se o escrúpulo de um homem sério. Um nada pacata, com uma longa estadia
soldado que teria ficado anónimo, como perto do Monte Felix (que o poeta re-
ficaram a maioria dos que serviram na fere numa canção) e invernando em
Índia durante décadas, não fora ter-nos Ormuz até Setembro. Quando regres-
legado um punhado de folhas de papel sou a Goa, soube da morte do Vice-Rei
onde escrevera o mais belo poema épico e da sucessão na pessoa de Francisco
da Europa Moderna. Refiro-me, natural- Barreto com quem viria a ter vários
mente, a Luís de Camões, que pela Índia problemas e sérios conflitos. Os con-
andou durante 17 anos, percorrendo ca- tornos dessa relação são difíceis de
minhos que foram do Mar Vermelho a definir, porque (mais uma vez) estão
Macau, participando em variadíssimas envoltos na bruma de quase tudo o
campanhas militares e navais, regres- que diz respeito a Camões. Por im-
sando ao reino sem um tostão com que posição do novo governador ou por
se alimentasse, vivendo apenas da ajuda vontade própria, partiu para Macau
de amigos que o estimavam. Valeu-lhe o em 1556, com o cargo de provedor-
reconhecimento régio do valor dos seus -mor dos defuntos, e nessas longín-
versos que lhe concedeu uma renda de quas paragens do Oriente o coração
15000 réis anuais. voltou a atormentá-lo com a arden-
A vida de Camões é tão misteriosa te paixão por uma dama chinesa de
como a de quase todos os génios que a nome Dinamene. Regressou com ela
humanidade conheceu. É difícil saber à Índia, mas quis o destino que o na-
onde nasceu – terá sido em Lisboa? terá vio naufragasse nuns baixos em frente
sido em Coimbra? terá sido noutro lu- Luís de Camões. à foz do rio Mecong. Dinamene mor-
Ilustração do Comandante Sousa Machado em “Os Lusíadas”.
gar qualquer? – e a data exacta em que Edição do Ministério da Marinha – 1972. reu (“Alma minha gentil que te par-
veio a este mundo merece algumas con- tiste...”) e perdeu toda a fazenda que
trovérsias, só tardamente resolvidas. Ma- so de Meneses e vivia-se o desassossego da trazia da China, salvando apenas uns rolos
nuel Faria e Sousa (sec. XVII) diz ter visto ameaça turca vinda do Mar Vermelho (Ma- de papel em que já escrevera uma parte de
na Casa da Índia um documento em que se rinha de D. João III (47)). O poeta embarcou Os Lusíadas.
alistava para partir para o Oriente em 1550, (provavelmente) na armada de D. Francis- Chegado à Índia, encontrou, como Vice-
e onde fora declarado, na presença de seu co de Meneses que, no princípio do ano de -Rei, D. Constantino de Bragança que o pro-
pai Simão Vaz de Camões, que tinha 25 anos 1554, partiu para Ormuz derrotando os tur- tegeu e cuja acção louvou numa magnífica
de idade. Diz-se – ou melhor, disseram mui- Ode poética. Pouco mais se sabe ao certo da
tos dos seus biógrafos que nunca hesitaram Olhai que há tanto tempo que, cantando sua vivência em Goa, nos anos que seguem,
em fazer crescer os mitos – que pouco tem- O vosso Tejo e os vossos Lusitanos, para além de dívidas, problemas, amores,
po antes dessa data, se afastara da corte por A Fortuna me traz peregrinando, invejas e versos, que parecem ser o ciclo fa-
causa de uma paixão impossível com Dª Ca- Novos trabalhos vendo e novos danos: tal de uma vida de privações e miséria. Em
tarina de Ataíde. Viveu à “beira do Zêzere” Agora o mar, agora experimentando 1567 partiu com Pedro Barreto quando este
e de lá voltou para embarcar para a Índia. Os perigos Mavórcios inumanos, foi assumir a capitania de Sofala, e em Mo-
Aliás, a vida de Camões é descrita como Qual Cánace, que à morte se condena, çambique o foi encontrar Diogo do Couto,
uma interminável adolescência de amores Numa mão sempre a espada e noutra a pena; quando regressava a Lisboa, em 1569. Deve
sofridos e arrebatados, intercalados com ter passado com ele esse ano de 69 e regres-
duelos, rixas, desacatos, prisões, dívidas, Agora, com pobreza aborrecida, saram ambos a Lisboa, na armada de 1570,
degredos e ausências. E aura nasce nos seus Por hospícios alheios degradado; que chegou ao Tejo no final desse ano. Sabe-
próprios versos que realçam o caminho trá- Agora, da esperança já adquirida, -se que não participou na jornada de África
gico de um coração em sobressalto: o cora- De novo, mais que nunca, derribado;
Agora às costas escapando a vida, de D. Sebastião – para a qual estaria já velho
Que de um fio pendia tão delgado
ção que nos proporcionou generosamente Que não menos milagre foi salvar-se e debilitado – e viveu os últimos anos da sua
Os Lusíadas, mas não teve piedade de quem Que para o Rei Judaico acrescentar-se. vida numa casa à Calçada de Santana, onde
o carregou ao longo da vida. morreu a 10 de Junho de 1580.
Não é certo que Camões tenha assina- Z
do esse contrato na Casa da Índia em 1550 Os Lusíadas, Canto VII J. Semedo de Matos
e sabe-se que só partiu em 1553, depois de
CFR FZ
22 JANEIRO 2010 U REVISTA DA ARMADA