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A MARINHA DE D. SEBASTIÃO (5)
A pirataria no Malabar e a guerra de Cananor
Acidade de Cananor fica no limite nor- Diogo do Couto não se cansa de criticar a lâmicas do Malabar) que prepararam uma
te da costa do Malabar, muito próxi- forma seca e arrogante como este fidalgo armada para atacar a praça de Cananor. De-
mo do Monte de Eli, que constituiu da casa real assumiu o seu cargo, tratando corria o mês de Abril de 1559, quando Mello
da Silva lhes fez frente “no lugar onde cha-
uma referência para a navegação portuguesa de forma fria o Ra¯ ja Hindu e não o ouvin- mam a Palmeirinha”, numa tremenda ba-
talha prolongada e dura. A vitória sorriu
de África para a Índia, no primeiro quartel do quando ele chamou a atenção de um aos portugueses, mas à custa de cerca de 30
mortos e várias dezenas de feridos. Seis na-
do século XVI e antes do estabelecimento grupo islâmico que, nesse final do ano de vios inimigos foram apreendidos e o capi-
tão resolveu retirar-se para Goa, tendo em
da sede do Estado em Goa. Foi D. Francisco 1558, se preparava para sair para o mar com vista que a estação das chuvas da monção
de sudoeste estava a chegar. O Vice-Rei ti-
de Almeida que ali construiu uma fortaleza, uma fusta bem armada, para se dedicar à nha chegado de Damão quando tomou co-
nhecimento da situação em Cananor e da
no ano de 1506, claramente com um objecti- pirataria. A sua primeira vítima seria um chegada da armada, considerando-a extre-
vo estratégico de domínio das rotas que se navio onde viajavam 10 ou 12 portugueses mamente inoportuna e perigosa
para o Malabar. Num primeiro
aproximavam de Calecut, complementando que se dirigiam a Cochim com a sua fazen- ímpeto mandou prender Luiz
de Mello tencionando remeter
essa pressão militar com uma presença sóli- da. Coincide este incidente com os prepa- os navios de volta para o sul,
sob o comando de outro chefe.
da em Cochim, um pouco mais a sul. Sabe- rativos finais para a tomada de Damão e Valeu ao capitão o prestígio de
homem honrado e a intervenção
mos bem como os portugueses mereceram o Vice-Rei não quis alterar os seus planos, de outros fidalgos que sabiam
não ser homem negligente ou
o apoio sistemático do Ra¯ ja desta última ci- mas enviou para o Malabar uma pequena pusilânime. A esquadra regres-
sou com o mesmo comando e
dade, onde carregavam o gros- em boa hora isso aconteceu, por-
que a estação das chuvas iria ser
so da pimenta que traziam para muito dura em Cananor. Ainda
em Maio os navios foram vara-
Lisboa todos os anos, mas Cana- dos na praia da fortaleza cober-
tos com folhas de palmeira e ou-
nor não era menos importante, tras protecções para resistirem à
estação, preparando-se as tran-
quer pelo abastecimento com- queiras para o ataque que viria
de terra. Em 15 de Maio deu-se o maior em-
plementar de gengibre, quer bate descrito de forma épica por Diogo do
Couto, que reputa as baixas finais em cerca
pelo domínio de uma pequena de 15 000 mouros mortos. Os números po-
dem ser exagerados, mas é evidente a vio-
baía abrigada ao norte de onde é lência com que tudo decorreu e a estrondosa
vitória portuguesa.
possível sair em vantagem tácti- O cronista insiste em que a culpa de todo
aquele sobressalto estaria na falta de senso
ca sobre navios que circulam na de D. Payo de Noronha que não soubera
relacionar-se com o Ra¯ ja Hindu. Todavia –
costa do Malabar. sem descurar a importância da diplomacia
nas relações com os poderes locais no Orien-
Com variações pontuais di- te – esta guerra não resultou de razões cir-
cunstanciais. Era algo que se vinha a prepa-
tadas por contingências da po- rar há longo tempo e o Ali Ra¯ ja sempre fora
um conspirador contra o domínio português
lítica local, relacionadas com a no Malabar, mesmo quando o Ra¯ ja Hindu se
manifestava como aliado. Este episódio vem
maior ou menor capacidade mi- na continuidade das guerras com Calecut e
de muitas outras acções que não teriam fim
litar de Calecut, o Ra¯ ja Hindu de durante o vice-reinado de D. Constantino,
como ainda teremos ocasião de ver.
Cananor manteve-se aliado dos
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portugueses, mas os muçulma-
J. Semedo de Matos
nos da terra sempre foram hos-
CFR FZ
tis à presença lusa, levando a Praça de Cananor, com a respectiva fortaleza e povoação.
cabo acções militares contra os “Livro de Plataforma das Fortalezas da Índia”.
navios e mesmo contra a fortaleza. Digamos armada de cinco navios, sob o comando
que o equilíbrio político-militar sempre foi de Ruy de Mello que “acharam a terra tão
precário, obrigando a uma acção ponderada alterada, e os Mouros tão soberbos”, pare-
entre a demonstração de força e a diploma- cendo-lhe que melhor seria avisar D. Cons-
cia. Firmeza e cortesia eram os dois pratos de tantino da situação e pedir-lhe reforços. De
uma balança que, a desequilibrar-se, poderia Goa foram, então, mais nove embarcações
comprometer a presença em Cochim e a ca- de remo, comandados por Luiz de Mello
pacidade de manter os fluxos de pimenta na da Silva, com instruções para ficar naquela
rota do Cabo da Boa Esperança. Sobretudo costa com todas as unidades, tendo espe-
era preciso respeitar a figura do soberano e cial atenção às embocaduras dos rios. Se-
mantê-lo com a força necessária, para que a ria este o herói da guerra contra os mouros
sua liderança não fosse disputada pelo Ali do Malabar, nos anos de 1558 e 59, numa
Ra¯ ja (Aderajao nas crónicas), o chefe da co- campanha prolongada que pôs em risco a
munidade muçulmana sempre pronto a de- presença portuguesa. O primeiro incidente
clarar guerra aos nacionais. E é fácil perceber grave teve lugar quando um navio portu-
que este jogo era complexo, porque a sobe- guês, que desconhecia o ambiente de guer-
rania sagrada sobre a terra que cabia ao pri- ra, fundeou ao largo e enviou uma embar-
meiro, não se estendia ao bazar e aos bairros cação a terra desembarcando na praia do
islâmicos nem às rotas marítimas, sendo fácil bazar. Esse homem foi preso pelos mouros
que os pequenos rios que desembocavam a e Luiz de Mello bombardeou as casas do Ali
sul da cidade dessem abrigo a enxames de Ra¯ ja, enquanto D. Payo lhes fez frente na
paraus armados que atacavam os portugue- tranqueira que rodeava a fortaleza.
ses e os seus aliados. Interveio o Ra¯ ja Hindu, mas era tarde para
Com a armada que levou D. Constantino apaziguar as hostes. Corria já uma aliança
de Bragança à Índia seguia D. Payo de No- alargada com gente do Samorim e de ou-
ronha, com destino à capitania de Cananor. tras comunidades mappila (comunidades is-
16 FEVEREIRO 2010 U REVISTA DA ARMADA