Page 18 - Revista da Armada
P. 18
com quatro camas e completamente equipa- ça estava com problemas de carência a nível O dia-a-dia do hospital era feito das roti-
do, enfermaria com capacidade para 27 do- do serviço de urgência, pelo que prontamen- nas que todos conhecemos nos hospitais da
entes, quarto de isolamento com pressão ne- te disponibilizámos um médico e três enfer- nossa realidade: consultas, urgências, cirur-
gativa com três camas, sala para fisioterapia, meiros, que de comum acordo decidiram dar gias programadas, exames complementares
zona de consultas, e ainda medicina dentária. apoio à urgência e às equipas de “crash and de diagnóstico, internamentos electivos, etc.
Havia também a existência de telemedicina, rescue”. Afinal de contas, o planeamento fran- A pouco e pouco, o hospital ia sendo conhe-
mas que mais não era do que o en- cido e reconhecido, levando a uma
vio das imagens da TAC, via satélite procura constante por parte de todos
para Paris, e posterior obtenção do os sectores envolvidos na guerra no
seu relatório. Afeganistão. A evolução natural e o
A VIVÊNCIA aperfeiçoamento da funcionalidade
hospitalar, também se terá devido à
INTERNACIONAL aprendizagem feita pela direcção
do nosso hospital, aquando da vi-
A característica curiosa deste hos- sita ao hospital role 3 Americano, e
pital é a de ser constituído por uma toda a sua estrutura de saúde militar.
equipa de trabalho multinacional, A rede de hospitais americanos role
sendo a lead nation francesa, com 2, distribuída por todo o país, a sua
84 elementos, seguida de Portu- interacção e toda a cadeia de saúde,
gal (15 elementos); Bélgica (8 ele- Aspecto exterior do Hospital em Kaia. que começa nos elementos de saú-
mentos); Alemanha (5 elementos); de colocados no terreno, que dão
Bulgária (5 elementos); USA (3 elementos), cês também tinha falhado a sua programação, a primeira assistência emergente, passa pela
estando as valências clínicas do hospital as- e estávamos curtos de pessoal.. coordenação de Medevacs e de toda a opera-
seguradas nas áreas de Cirurgia, Ortopedia, O arranque do funcionamento do hospital cionalidade das evacuações, terminando na
Anestesiologia, Medicina Interna, Oftalmolo- teve alguns problemas logísticos, como por exemplar forma de administração e gestão de
gia, Psiquiatria, e sendo o idioma de trabalho exemplo o fornecimento de água potável, um hospital militar em situação de guerra, re-
comum o inglês. Esta miscelânea e aparente constituindo-se num factor limitativo da sua lembra-nos o colosso militar que são os EUA.
torre de babel clínica, desembocava numa operacionalidade a cem por cento durante o
aplicação conjunta e final, em prol de ape- primeiro mês. Mesmo nas áreas funcionais, a A MISSÃO CLÍNICA
nas um objectivo: o doente! A experiência nossa equipa teve uma acção preponderante,
dos camaradas em outras missões deste tipo, e uma vez que practicamente era responsável A prioridade da nossa acção hospitalar era
e a natural adaptação a esta realida- direccionada aos militares da ISAF
de internacional, foi um acrescento (International Security Assistance
positivo final do conjunto. Force) e da OEF (Operation Endu-
O trabalho em ambiente interna- ring Freedom), mas também aos
cional tem estas mais valias de po- militares da ANA (Afghan National
dermos abordar os problemas sobre Army) e forças de segurança afegãs.
diferentes perspectivas clínicas e lo- A capacidade sobrante era dirigida
gísticas, enriquecendo as nossas vi- à população civil, e posso afirmar
sões e servindo para que da discus- que exercer medicina é igual em
são nasça verdadeiramente a luz. O qualquer recanto do mundo, mas
debate, a troca de experiências, a aqui revestia-se de uma componen-
partilha dos conhecimentos e até a te humanitária diferente. As diferen-
constante adaptação mútua, foram ças sociais e culturais, eram muitas
características desta vivência enri- vezes um obstáculo e um handicap
quecedora. O reverso da medalha Os dois médicos navais da equipa, juntamente com o médico americano, à na relação médico-doente. Ainda
também é verdadeiro, com o pri- entrada da urgência.
meiro obstáculo a ser o idioma, que que para o efeito tivéssemos a ajuda
preciosa dos tradutores (que curio-
muitas vezes é atabalhoadamente samente eram médicos especialis-
dominado, passando pelas próprias tas em Cabul, mas que ali tinham
diferenças de procedimentos vários sido contratados apenas para a tra-
nos países de origem, e acabando dução), amíude o tratamento tinha
no natural jogo de pressões de cada de ser explicado várias e repetidas
um dos contingentes para que o seu vezes ao doente, sem a certeza de
destacamento seja o mais positivo e que iria ser cumprido; a recusa das
ressalvado. Havendo por vezes pro- doentes afegãs em retirar a tradi-
blemas pontuais, todos os peque- cional burka, para a realização do
nos casos eram resolvidos de forma exame objectivo pelo médico do
muito satisfatória, destacando-se a sexo masculino, era um obstáculo
nossa equipa pela superior capaci- real a um correcto diagnóstico; e
dade de gerir estas situações, pela Médico Naval e enfermeiros franceses assistem civis afegãos. até os doentes afegãos, internados
forma serena e apaziguadora com na enfermaria, recusavam a alimen-
que as encarava, e sobretudo pelo empenho pela enfermaria, toda a organização do pro- tação fornecida pelas nossas enfermeiras. E
que colocava em todas as suas acções. A so- cesso clínico e de enfermagem, bem como mesmo a nossa natural dificuldade formativa
ciabilidade era uma característica da equipa, dos registos e casuística, e da própria escala, em avaliar e tratar crianças, para o qual não
e as opiniões foram sempre muito positivas e coube aos nossos elementos. Penso que as estávamos preparados, constituiu um desafio
folhas dos processos ainda devem ter o sím- à nossa acção.
oriundas de todos os quadrantes.
Inicialmente, a nossa equipa médica iria es- bolo do Hospital da Marinha no seu canto su- O facto de termos um tradutor também não
tar apenas alocada à enfermaria, mas a Fran- perior esquerdo!
nos garantia a comunicação. Isto porque os
18 FEVEREIRO 2010 U REVISTA DA ARMADA