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HISTÓRIAS DA BOTICA (71)
A poesia no nosso coração
Todos temos definições di- numa harmonia a que poucas vezes me foi por certo, a poesia do momento…
ferentes do que nos emo- dado assistir. Todos os que assistiram trouxeram, acre-
ciona, do que nos toca a
alma. Para alguns é a amizade Nasceu, na mesma medida em que o dite o leitor, que não pôde ajuizar da quali-
de alguns amigos, para outros espectáculo continuava, um silêncio pro-
o sorriso dos filhos, para outros, fundo de emoção na plateia. A senhora ao dade do espectáculo por esta pobre descri-
ainda, basta o ruído das gaivotas, meu lado, mulher já idosa, chorava copio- ção, uma pérola para casa. Essa pérola vale
numa manhã radiosa junto ao samente e eu próprio tive que fugir, subi- mais que vinte discursos de “integração da
Tejo – o rio que guarda a alma de tamente, para aquele castelo de silêncios, diferença”, ou mil sentimentos de comise-
Lisboa…Todos já nos sentimos para onde escapo quando os sentimentos ração. Esta foi a prenda que, sem pedir nada
invadidos por um sentimento são demasiado intensos…Mas continuou e
de beleza, que acreditamos ser continuou o espectáculo durante cerca de em troca, aquele grupo de artistas nos ofe-
maior que nós próprios…é esta a duas horas, entrecortando os momentos de
minha definição de poesia…Os maior emoção com outros mais leves preen- receu. E assim de repente, a vida daqueles
momentos de poesia são raros chidos por dois mimos, um deles também jovens pareceu ganhar um significado pro-
na nossa vida e devem ser valo- em cadeira de rodas… fundo, que eu não conhecia, e uma razão
rizados. Foi assim que aconteceu de existir que certamente até eles próprios
comigo recentemente. Foi assim Finalmente, as crianças de uma creche
que surgiu este escrito. Impôs-se- foram actuar e o espectáculo diminui de desconheceriam antes de actuarem.
-me na alma apesar do risco de intensidade emocional. Revivi, desde en-
desagrado – que os escritos que tão, muitas vezes aqueles sons, aqueles Num entendimento mais lato, são actos
tratam da alma induzem em de- momentos…
terminado grupo de leitores que, como este que reforçam a esperança na
sei à partida, desgosta deles. Os artistas, a maior parte com nomes es- humanidade, que somos todos. As pessoas
trangeiros, pertenceriam a um reconhecido que se deram a tanto esforço, fizeram-no
Fui assistir a uma Festa de grupo o Le Cirque du Soleil e, foi expresso porque têm valores maiores (…superiores
Natal de uma instituição para no final, actuaram graciosamente. Achei
adolescentes e jovens adultos deficientes. que independentemente da sua qualidade, à ganância e ambição desmedidas, que
Esta associação foi fundada por um pai que foi o facto de actuarem com artistas “inca-
tem, ele próprio, dois filhos que frequentam pacitados”, que lhes granjeou a originalida- caracterizam, sabemos bem, estes tempos
as instalações. Nela se misturam incapaci- de da actuação. E tudo, que pareceu estar
dades de vários tipos, desde as incapacida- em simples harmonia, deve ter exigido gran- em que vivemos…). Desejei intimamente,
des físicas estritas, às incapacidades cogniti- de tempo de prática e treino. Para nós, todos como desejaram outros naquela sala, retri-
vas ou mentais e às situações que misturam os que estávamos do outro lado emocionou- buir-lhes de alguma maneira, achei esta for-
as duas dificuldades e são particularmente -nos particularmente a dignidade com que ma simples, pois é só desta forma que lhes
perturbadoras. Levei a família toda, pois o tudo aconteceu e a elevação de pessoas
adolescente que frequenta essa escola é-nos com grande azar e sofrimento na vida ao consigo agradecer: escrever sobre a poesia
muito chegado. Acreditámos que, no qua- nível da “normalidade”. Essa foi, tomo-o
dro referido atrás, o espectáculo seria triste, que criaram no nosso coração…Acredito,
porque consistiria em jovens com incapa- que, pelo menos alguns leitores vão com-
cidades físicas graves, ou mentais pertur- preender que são razões como esta, que nos
badoras, desfilando num qualquer tipo de impelem a agradecer…Serão simplesmente
teatro para o qual não teriam interesse ou todos aqueles que receberam qualquer for-
mesmo capacidade. Não poderíamos estar
mais enganados… ma de generosidade pura – aquela que não
Na verdade, após a actuação inicial de espera, nem pede nada em troca… Z
um cantor famoso chamado André Sardet,
assistimos a um espectáculo que nos irá en- Doc
cher a alma e a memória durante os anos
vindouros. Não percebemos, no início, o
que iriam tantos actores e tantos trapézios
fazer, ali, naquele contexto. Foi então que
começaram os números que misturam ar-
tes de circo com artistas de ballet clássico,
enquadrados por música bela, em línguas
estranhas, mas espessa de conteúdo. Con-
tudo, ficamos absolutamente surpresos,
quando esses artistas se misturam com ou-
tros, até em cadeiras de rodas, em números
que os elevavam no ar suspensos por cor-
das invisíveis, ou participavam em núme-
ros de ballet em que braços se misturavam
30 FEVEREIRO 2010 U REVISTA DA ARMADA