Page 22 - Revista da Armada
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A MARINHA DE D. SEBASTIÃO (10)
O Outono cinzento do Conde do Redondo
Aprincipal acção conduzida pelo vice
rei D. Francisco Coutinho, Conde do saiam dos rios a atacar os navios mercan Os navios passaram por Cananor – o lo
Redondo, no governo da Índia, foi a tes. Das condições portuguesas constavam, cal que fora o cerne da violência cerca de
no entanto, algumas exigências que o Samo três anos antes – sem entrar nem se deter, e
paz que estabeleceu com o Samorim, colo rim não hesitou em aceitar: deveria retirar o foram fundear em Tiracolle. Local hoje de
cando nesse acto toda a pompa que lhe foi esporão a todos os seus navios próprios, e saparecido na evolução lagunar, certamente
possível, numa manobra diplomática que zelar para que, dos seus portos e rios, não nas imediações de Calecut, num território
era habitual na Europa e que visava impres saíssem corsários a atacar os portugueses ou sob jurisdição do Samorim. Diz o relato que
sionar os virtuais inimigos, com o fausto do os seus aliados. Aparentemente eram con a esquadra permaneceu embandeirada em
próprio cerimonial. dições normais, embora todos soubessem arco, com toldos de várias cores, desembar
Num dos números anteriores da REVISTA que as condições para as cumprir não eram cando as gentes em trajes da melhor qua
DAARMADA, falei do problema dos bairros tão fáceis como o fluir das palavras no do lidade, ricos e vistosos, debaixo dos quais
muçulmanos de Cananor, que se opunham à cumento assinado. todos levavam suas armas, numa postura
posição neutral do ra¯ja hindu, sendo neces O Conde passou todo o período da mon de prudência que era indispensável na Ín
sário um tacto e sensibilidade diplomática ção a preparar uma imensa armada para ir dia. O acordo foi, de facto, assinado e até ce
muito grande para manter em equilíbrio um ao sul em Setembro e recebeu os navios do lebrado com muitas festas, mas quando os
conjunto de factores que facil dois soberanos terminaram
mente se precipitavam, causan as suas vénias e mesuras,
do grandes prejuízos, pratica todas de acordo com o que
mente, em todo o Malabar. Um recomendavam os costumes
dos soberanos que tardiamente da Europa e da Índia, e se
começou a perceber as desvan afastaram um do outro, var
tagens de alimentar essas guer reuselhes qualquer preocu
rilhas foi o Samorim de Calecut, pação de fazer cumprir o que
sobre quem recaíam quase todas tinham acordado. Não creio
as represálias portuguesas, so que qualquer deles tivesse
bretudo com os maiores prejuí outra preocupação do que
zos económicos. Era evidente salvaguardar as aparências
que as comunidades Mappila que, no fundo, poupavam os
(muçulmanos da Índia) usavam grandes e dispendiosos em
a má relação do Samorim com penhamentos militares.
Portugal em benefício próprio, D. Francisco Coutinho foi
sendo cada vez mais claro que a Cochim assistir à saída das
ele não beneficiava muito com naus do reino e visitar a fei
isso, vendo reduzidas as suas toria portuguesa, onde ainda
rendas e ficando cada vez mais não tinha estado, regressan
isolado no espaço Hindu. A es Muçulmanos de Cananor, inimigos tradicionais dos portugueses, e outras gentes do a Goa tão depressa quanto
perança de derrotar os portu do Malabar - Itinerário, Viagem ou Navegação – Jan Huygen Van Linschoten. pôde, “receoso dos noroestes”
gueses esvaírase com as derrotas dos turcos reino com grande alegria, pela quantidade que viriam com a estação.Aproximavase do
a norte, e a guerra de 1559 realçara ainda mais de gente que traziam para ficar na Índia, re fim a vida agitada do antigo governador de
a sua fragilidade naquele contexto. O próprio forçando as suas capacidades e, sobretudo, Arzila, pressentindo o esfumarse da energia
Samorim já não desejava outra coisa que não concorrendo para o cortejo que queria fazer de outros tempos. Planeava ir ao Achém no
fosse fazer a paz com os portugueses, embo no Malabar. Fez todas as diligências neces ano seguinte, e destruir o sultanato que tantos
ra soubesse como era difícil levála aos seus sárias, entregando credenciais de governo problemas causava a Malaca, sabendose que
súbditos islâmicos. ao Arcebispo e ao recémnomeado capitão enviou cartas ao capitão D. Francisco d’Eça,
Encontrou a sua grande oportunidade de Goa, Lopo Vaz de Sequeira (filho do go para que se preparasse com uma armada. Diz
quando o Conde do Redondo tomou pos vernador Diogo Lopes de Sequeira), e em Diogo do Couto que passou toda a monção de
se como vicerei da Índia, apresentandolhe Dezembro zarpou da barra com cerca de 1563 a aparelhar os navios para o fazer, mas
de imediato os seus embaixadores em Goa, 140 navios e mais de 4000 homens. Diogo desistiu da empresa sem que se soubesse por
com uma proposta de paz. D. Francisco re do Couto, que relata estes factos e que, al que razão assim o decidiu. No princípio do
cebeuos com grande cortesia, preparando guns anos mais tarde, veio a assumir po ano de 1564 adoeceu subitamente e morreu
se para fazer dessa operação diplomática sições muito críticas sobre a administração a 19 de Fevereiro. Foi sepultado na igreja de
uma grande demonstração de força e pres desastrosa e a penúria em que foi envolvi S. Francisco, em Goa, e deixou testamentado
tígio, à maneira das cortes europeias e dos do o governo da Índia, não poupa elogios a que os seus ossos deveriam ser translada
faustos mediterrânicos, em que D. Manuel estas vagas de gente nova e, aparentemente, dos para a vila do Redondo. Nas sucessões
tinha sido pródigo. Reteve os embaixado bem preparada, que chegava de Lisboa para que foram abertas, coube o governo da Índia
res em Goa por algum tempo, ditandolhes reforçar a guarnição da Índia. Era da melhor a João de Mendonça que assumiu o cargo
as condições da paz, e foi preparando uma soldadesca que alguma vez se vira no Orien pelos seis meses que faltavam, esperando
enorme armada em que ele próprio iria a te, segundo ele diz. E é nos mesmos termos se que nesse ano viesse novo vicerei, como
Calecut. Esse acordo também era importan elogiosos que se refere a esta armada cuja veio a acontecer.
te para Portugal, na medida em que podia missão era diplomática, onde valiam mais
apaziguar o Malabar, reduzindo a margem as sedas e brocados do que a rudeza das ar
J. Semedo de Matos
de manobra dos enxames de paraus que maduras e o cheiro da pólvora. CFR FZ
22 JULHo 2010 • Revista da aRmada

