Page 28 - Revista da Armada
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INCIDENTES DE GUERRA                                10º dia de missão ter havido um MASCAL e, O plano MASCAL era activado quando o
                                                    sabendo apenas os nossos postos, exercemos MED-RCC (responsável médico para a região
O destacamento médico português partici- a nossa acção de forma serena e com muito centro doAfeganistão, incluindo Cabul) informa-
pava com um esforço adicional na constituição profissionalismo.                                       va o OPS room (centro de comunicações do hos-
das equipas de Crash and Rescue do hospital. Dos incidentes ocorridos em Cabul, de onde pital) do incidente, o Coronel Médico (director
Existiam três equipas (Med1, Med2, Med3), recebíamos a maioria dos eventos multivitimas, do hospital) avaliava a capacidade de resposta e
cada uma constituída respectivamente                                                                    dava ordem para convocar telefonicamente
por um médico, um enfermeiro e um con-                                                                  ou por Bip todos os profissionais do hospi-
dutor, com turnos de 24 horas. O Med 1                                                                  tal, sem excepção, para assumirem os pos-
tinha uma prontidão de cinco minutos e                                                                  tos respectivos. As emergências cirúrgicas
dava apoio em caso de acidente na pista                                                                 eram assumidas pelas equipas francesa, ale-
de aterragem ou de alguma emergência no                                                                 mã e búlgara. Nas restantes boxes ficavam
perímetro da base.A equipa Med2 fazia os                                                                equipas distribuídas pelas outras naciona-
transportes electivos dos portões da base                                                               lidades (Portugal, França, Bélgica e Estados
para o hospital, enquanto a equipa Med3                                                                 Unidos). Em cada boxe, estava um médico,
concretizava as evacuações de, e para os                                                                um enfermeiro e um socorrista.
helicópteros, bem como do hospital para                                                                 Após triagem à entrada do Serviço de
os portões da base. Esta tarefa era de du-                                                              Emergência, era registado num painel o
plo risco por dois fortes motivos: primeiro                                                             destino de cada doente, esta informação
a transferência dos doentes nos portões                                                                 era dada após observação sistematizada
da base para veículos civis facilitava os                                                               do doente e orientada pelo médico coor-
ataques insurgentes; segundo os doentes      Vitima de guerra, 2 anos, em paragem respiratória, chegou  denador. Este ditava qual o primeiro do-
a transportar eram de elevada complexi-      ao colo de militares americanos. Sobreviveu!               ente a entrar no bloco, quem ia primeiro

dade e, em muitas das circunstâncias ins-                                                               realizar TC ou Radiografia, quem ia para
táveis. Apesar das condições de seguran-                                                                a enfermaria ou, caso estivesse a morrer
ça individual (colete, capacete e arma) as                                                              sem viabilidade clínica, quem ía para o
condições eram quase sempre adversas e                                                                  espaço dos doentes apenas para “cuida-
a ameaça constante.                                                                                     dos paliativos”, ninguém podia morrer
Perante a ocorrência de eventos multi-                                                                  sozinho, nestes espaços, criados para o
vitimas, era activado no Hospital o plano                                                               efeito, estava sempre um enfermeiro para
MASCAL. Neste plano de emergência to-                                                                   dar morfina se existissem dores e um so-
dos os recursos humanos do hospital eram                                                                corrista para quanto mais não fosse uma
canalizados para o Serviço de Emergência.                                                               palavra de alento.
No mês de Janeiro assistimos à mudança de                                                               Muitas vítimas chegavam já sem vida.
direcção do Hospital, nesta altura o plano                                                              Recordamos os militares franceses e ame-
pré-delineado com atribuição de tarefas a                                                               ricanos que recebemos cadáveres. Os
cada um dos elementos do hospital foi al-                                                               corpos foram depositados na morgue do
terado com o cunho do destacamento mé-                                                                  hospital. Ninguém ficou indiferente, eram
dico português mantendo-se como linhas                                                                  mais que um simples corpos, eram “dos
estruturais inalteráveis os tempos de pron-                                                             nossos”, inevitável seria pensar que ama-
tidão, cinco minutos para os elementos de                                                               nhã podia ser “um de nós”. Durante a noi-
triagem e vinte minutos para todos os res-                                                              te era como se o velássemos, ninguém se
tantes elementos bem como, a organiza-                                                                  conseguia divertir por perto, reinava um
ção de canais de distribuição de doentes                                                                silêncio absoluto no hospital, nas honras
conforme a gravidade das vítimas recebi-                                                                militares destes soldados e mesmo depois
das. Nesta fase os profissionais portugue-                                                              da despedida não se ouvia senão os ruídos
ses eram os eleitos para assumir todos os                                                               dos motores dos aviões que os transporta-
postos fulcrais de actuação. Estes postos                                                               vam para os respectivos países.
não eram estáticos, assim, todos os enfer-
meiros e socorristas da enfermaria eram
distribuídos inicialmente pela triagem e     Plano MASCAL: Portugal presente em todos os postos         ADVERSIDADES
emergência para recepção das vítimas em      fulcrais de actuação
perigo de morte ficandov a enfermaria com                                                                 Esta Missão caracterizou-se sobretudo
                                                                                                        por mudanças e adaptações, nestas resi-
os requisitos mínimos; os dois médicos também ficaram retidos na memória os ataques suicidas diram parte das adversidades:
ocupavam duas boxes na urgência e, quando a ao Hotel Serena e em Camp Phoenix mas tam- Tivemos uma constante adaptação ao meio
situação já se encontrava controlada (doentes es-   bém, a catástrofe natural que foi a avalanche     multinacional (predominâncias; idioma domi-
tabilizados) todo o staff da enfermaria voltava ao  de neve que deixou soterrados num túnel em        nante; rotação equipas) se, por um lado, parece
internamento no sentido de manter estáveis os       Cabul milhares de vítimas das quais recebemos     enriquecedor por outro, é extraordinariamente
doentes trazidos do Serviço de Emergência em        apenas os que sobreviveram queimados pelo         cansativo e desgastante.
condições menos graves de forma a assegurar e       frio. Também recebemos doentes de Kandahar
                                                                                                        Tivemos dois comandantes de destacamento,
melhorar os estados clínicos das vítimas.           e Helmand, evacuados por helicóptero (Me- assistir à mudança de comando aos dois meses
Era uma organização planeada mas em mu- devac), quando não existiu capacidade para de missão requerer adaptação e integração den-
tação constante consoante as necessidades de receber ou estabilizar nos hospitais ROLE2 aí tro do seio da equipa e um esforço conjunto para
adaptaçãodosnovosprofissionaisqueacabavam existentes. Do nosso hospital evacuávamos por manter um fio condutor;
de chegar e ainda não estavam integrados.           via aérea para Bagram(80km de Cabul), ROLE          Tivemos o êxodo de KAIA Sul para KAIA
  Como se percebe nestas situações evitar a         3, os feridos com necessidades de intervenção     Norte condicionando o aumento exponencial
                                                    neurocirúrgica emergente ou ginecológica e/       da população em KAIA Norte, a ausência de
confusão, ausência de estratégia e coordena-        ou por via terrestre civis afegãos, para os hos-  locais de convívio e descontracção durante 2
ção de desempenho exigiu um enorme esfor-           pitais de Cabul.                                  meses de obras bem como, a ausência de lojas
ço da equipa. Salientamos o facto de no nosso

28 SETEMBRO/OUTUBRO 2010 • Revista da aRmada
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