Page 26 - Revista da Armada
P. 26
Saúde Naval em ambiente de guerra
A Marinha no hospital multinacional ROLE 3, Afeganistão
2ª PARTE
EXPERIÊNCIA INTERNACIONAL rosamente representávamos. Nunca deixarmos idade pediátrica) e também, pelas característi-
de ver a equipa como um todo, disponibilida- cas do próprio serviço que recebia doentes pro-
OHospital Médico-Cirúrgico, ROLE 3, de incondicional para o trabalho e na partilha venientes da emergência, do bloco operatório,
KAIA, apresenta características que, à dos bons e dos maus momentos. Aprendemos da unidade de cuidados intensivos e do ROLE 1
partida, aliciam o desenvolvimento da todos os dias com humildade a reconhecer os (consulta externa de todas as especialidades in-
actividade profissional nomeadamente, a co- nossos erros assim, conseguimos corrigi-los e ter cluindo oftalmologia). Durante a Missão foram
laboração mais estreita entre especialistas de o reconhecimento e respeito de todos. A nossa observados em internamento um total de 390
várias nações, a mais profícua troca de experi- união foi favorecida pelas adversidades por que doentes. A prioridade da nossa acção no Hos-
ências quer intra quer inter-serviços e sobretu- passamos diariamente que, mais não foram, que pital era direccionada aos militares ISAF (44%
do, permite a prestação de cuidados de saúde desafios ultrapassados. dos doentes observados).
de forma especializada e diferenciada num ce- Cedo nos percebemos da enorme rotativida-
nário de Guerra com um carácter humanitário de de profissionais de saúde durante o período A componente humanitária da Missão foi
indubitável. da nossa missão, como tal, criámos na Enfer- sentida com internamento de civis afegãos (39%
A barreira linguística entre profissio- dos doentes observados). Destes, salientamos o
nais de saúde foi ultrapassada natural-
mente utilizando os meios informáticos facto de 18% serem crianças e apenas
e os termos técnicos usuais inerentes à 12% mulheres.
prática clínica diária. No caso dos do-
entes e familiares afegãos, foi facilitada A grande maioria dos doentes era
pela presença de médicos tradutores da do sexo masculino o que obrigou à
mesma nacionalidade. gestão das vagas de enfermaria e, em
Apesar das diferenças e das pressões particular quando se tratavam de crian-
de cada um dos contigentes para ser “o ças, ao internamento conjunto de um
melhor” a equipa internacional multi- familiar acompanhante. Pelo exposto,
disciplinar a trabalhar no hospital de a taxa de ocupação da Enfermaria foi
KAIA teve sempre como objectivo ulti- sempre, durante os quatro meses, pró-
mo satisfazer as necessidades de saúde xima dos 100%.
dos doentes: Militares da ISAF (nacio-
nais e estrangeiros); Forças de seguran- Cerimónia de recepção medalha da NATO. As patologias mais frequentes eram
do foro da traumatologia e cirurgia.
ça afegãs (exército e polícia); Civis (afegãos ou maria (local onde estávamos em maioria) pro- Na área médica os casos foram pou-
estrangeiros ao serviço da ISAF).A prioridade de tocolos de actuação (para a hiperglicemia, an- cos mas bons! Entre outros, nos milita-
assistência era para os militares ISAF e a restan- ticoagulação e dor), um processo clínico e de res distinguiram-se as séries de litíases
te capacidade para os militares da ANA, Policia enfermagem onde constavam os símbolos da renais que apareciam no Inverno sob forma de
Afegã e em última instância aos civis (estes por equipa médica portuguesa para além da fran- cólica renal ou complicadas de infecções renais
ordem de prioridade: homens, crianças do sexo cesa já existente e, as notas de alta passaram a (pielonefrites), um caso suspeito de Febre he-
masculino e mulheres). ser todas informatizadas. Esta organização per- morrágica Crimeia e do Congo que felizmente
No Hospital, sabíamos que a primeira rotação mitiu visivelmente uma melhor integração dos não se confirmou, um caso de trombose venosa
da nação portuguesa tinha tido um desempenho novos elementos. cerebral, um tumor hepático e um enfarte agudo
excelente e superado os objectivos a que se pro- do miocárdio com indicação para trombólise,
pôs, competia agora à nossa equipa continuar ACTIVIDADE DESENVOLVIDA tendo a equipa médica portuguesa sido pioneira
a avançar no hospital com este procedimento
esse trabalho. Da nossa adaptação, espírito de que decorreu sem intercorrências e com exce-
equipa e camaradagem resultou a forte motiva- Na enfermaria a saúde naval esteve muito lente resultado final.
ção para continuar o trabalho iniciado com tão bem representada. A actividade diária na enfer- No início, face às características da popula-
bom ou melhor desempenho. Reconhecemos maria difere da realizada nos Serviços de Me- ção civil afegã, esperávamos resistência à ob-
ao longo do tempo o verdadeiro significado dicina Interna pelas características dos doentes: servação dos homens por uma médica, menos
das palavras um por todos e todos por um e são sobretudo vítimas de trauma (ortopedia/ci- obstáculos na observação das mulheres mas
tolerância em prol desta nação que tão hon- rúrgica) com idade média 30 anos (alguns em este fenómeno cultural não se verificou, pri-
meiro porque as mulheres dificilmente tinham
acesso aos cuidados de saúde, segundo porque
Grávida com queimaduras graves tratada na Jamshid: o primeiro de muitos desafios. Kaiss, sete anos, morreu com infecção grave.
Enfermaria.
26 SETEMBRo/oUTUBRo 2010 • Revista da aRmada