Page 27 - Revista da Armada
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sendo a equipa de enfermaria maioritariamente junto do refeitório, a fazer corridas com a sua Quem exerce Medicina sabe que esta arte é
do sexo feminino os homens constatavam que cadeira de rodas no exterior do hospital enfim, igual em qualquer recanto do mundo, espera
não tinham alternativa e a sua condição física a gozar de uma liberdade muito própria de to- sempre um resultado final positivo e, não está
não favorecia a criação de grandes óbices de das as crianças e que, neste cenário acresce de habituado a muitas reservas de escolha tera-
relação médico-doente. riscos que eles mais do que ninguém ignoram
e enfrentam sem receios. pêutica desde que fundamentada. Neste
Apesar de tudo, nas visitas médicas rea- cenário o insucesso terapêutico é duro
lizadas diariamente às 8h da manhã, a O Jamshid foi o primeiro de muitos meninos mas é uma realidade. Por exemplo, na
equipa médica multidisciplinar procurava a convalescer connosco. Realçamos o facto área médica, para a infecção dispúnhamos
que a abordagem aos doentes fosse sempre de ele e todas as outras crianças terem pega- de cinco antibióticos, para a hipertensão
de encontro à forma que menos compro- do nas canadianas pela primeira vez e, sem dois anti-hipertensores e para a diabetes
metesse o doente, isto é, por exemplo, se saberem bem para que serviam, usarem-nas apenas de insulina. Na área cirúrgica os
o penso fosse feito por uma enfermeira a numa primeira abordagem como arma e só internamentos para cirurgias de colocação
um homem os médicos do sexo masculino depois perceberem que aquele objecto era de de próteses da anca eram realizadas se as
seriam quem mais se aproximava e proce- auxílio para marcha. famílias comprassem a prótese a ser subs-
diam ao exame objectivo, o reverso suce- tituída. Nas crianças esta reserva foi mais
dia no caso das mulheres. Das mulheres angustiante e frustrante, fez-nos lutar con-
observadas salientamos pela sua severida- tra o tempo de forma avassaladora, horas
de uma vítima de uma explosão de gás na e horas de estudo e investigação, inúme-
sua residência, estava grávida e apresentava ros contactos com vários países para pedir
queimaduras nas mãos e face. O seu tra- fármacos, envio de amostras de líquidos
tamento foi, ao contrário do que estamos orgânicos para França e para laboratórios
habituados, exclusivamente na enfermaria em Cabul para poder fazer o diagnóstico,
não tendo tido acesso aos Cuidados Inten- mas o esforço foi em parte recompensa-
sivos. Por necessidade imperiosa de vagas do, Portugal enviou-nos o factorVIII (cons-
na sequência de um MASCAL, foi para tituinte do sangue) vital para uma criança
casa ainda a fazer os pensos e guardamos de cinco anos hemofílica; e, infelizmente
na memória o ar desesperado do marido, um dos nossos óbitos foi o de uma crian-
militar afegão, quando a mesma teve alta. ça de sete anos com uma provável tuber-
Felizmente tudo correu bem. culose multirresistente cujo teste de re-
sistência aos antibacilares, enviado para
As crianças foram o nosso principal de- Cabul, nunca soube. O outro óbito, foi
safio emocional e clínico. Quase todas vi- de um militar afegão já internado à nossa
nham com um ar triste, fechado e de so- chegada, com uma lesão cutânea axilar
frimento, entravam na enfermaria muito que infectou e depois de operado conse-
assustadas e sempre apreensivas em rela- cutivamente após enxerto de pele fez um
ção a tudo e a todos. Os tradutores nestes quadro de infecção generalizada vindo a
casos também não nos ajudavam muito falecer na UCI.
pois a garantia de comunicação estava
comprometida, eles eram Pashtun fala- Para além da missão clínica, a equipa
vam Dari (idioma oficial) mas nem todas médica foi sensível aos problemas sociais
as crianças falavam Dari. Para ultrapassar dos doentes internados, apesar de os afe-
este obstáculo, a equipa médica adoptou gãos serem pessoas com um grande sen-
a “língua gestual universal dobrada em tido de família e não deixarem ninguém
português, isto é, com expressões gestu- no hospital após alta à espera de lar por
ais, algumas palavras-chave em Dari e o exemplo, não reuniam, na maior parte
restante em português, procurámos um das vezes, condições para levar os seu
equilíbrio que resultou na perfeição. familiares até às próprias casas.Tomamos
a iniciativa de tentar arranjar uma cadeira
As patologias mais frequentes nas crian- de rodas; arranjamos junto de várias na-
ças foram do foro traumatológico. Des- ções roupa para agasalho nos dias mais
tes salientamos o caso do Jamshid, in- frios e demos comida, a que podíamos
ternacionalmente conhecido pois todas dar (apesar de ao inicio todos aceitarem
as televisões que nos visitaram e todas com relutância o comer, facilmente se
as nacionalidades em KAIA (mais de 40) habituavam).
o acolheram com ternura e se interessa-
vam pela sua história de vida. Tratava-se No internamento conseguimos para
de uma criança vítima de um ataque com além dos brinquedos para as crianças,
um rocket de que resultou uma amputa- um DVD e filmes educativos para as en-
ção traumática de um membro e uma treter durante a estadia que, para muitos
queimadura grave na região abdominal. era longa.
Depois de dois meses internado no nosso
serviço, após tratamento cirúrgico e estabiliza- No laboratório e na fisioterapia a saú-
ção na UCI, começou a andar e a falar connos- de naval também esteve muito bem represen-
co fruto da estimulação diária de todos os ele- tada como demonstram os resultados obtidos
mentos da equipa portuguesa, o sucesso foi tal, ao longo da missão. Foram realizadas 12800
que dois meses após o inicio desta recuperação análises, com uma média mensal de 400, sen-
fomos obrigados a alertar a direcção do hospital do em média requisitados sete parâmetros la-
para o reforço de vigilância das entradas e saídas boratoriais por dia. Os principais parâmetros
do próprio hospital, porque já era praticamente laboratoriais requisitados foram: Hemograma;
impossível que o Jamshid não seguisse os nos- Bioquímica;Tipo de sangue; Bacteriologia. Na
sos passos e não estivesse à porta da lavandaria, fisioterapia realizaram-se um total de 1908
tratamentos.
Revista da aRmada • SETEMBRO/OUTUBRO 2010 27