Page 10 - Revista da Armada
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EM CASA NA BARCA DO INFANTE
A ideia de viajar a bordo da “Sagres” surgiu no início de 2010 -prima que tencionava recolher ao longo da viagem.
quando, casualmente, encontrei em Lisboa o actual director da Na qualidade de investigador da História da Expansão Por-
Revista de Marinha, o Vice-Almirante Alexandre da Fonseca, que
me sugeriu que fizesse uma reportagem a respeito da passagem tuguesa estou habituado a embarcar em viagens de contornos
da “Sagres” por Macau – longe se estava então do ambiente nebu- e sabores exóticos com o objectivo de seguir o rasto dos nossos
loso que se viria a instalar e que impediu a tão ansiada visita a esse antepassados um pouco por todo o mundo. Os resultados da
peculiar território chinês que Portugal administrou durante quase investigação são garantidamente surpreendentes. Contra todas
500 anos. Alexandre da Fonseca, que aqui há uns anos entrevista- as adversidades e imponderabilidades, a influência portuguesa
ra para a Magazine Grande Informação, revista mensal hoje extinta, enraizou-se ao longo de milhares de quilómetros de mar, ilhas e
passara a ser um amigo. Por isso mesmo, não hesitei. Sugeri-lhe continentes e deixou as suas marcas residuais em domínios como
escrever não só sobre a etapa Macau mas também sobre uma par- a língua, a música, o traje, a arquitectura, as lendas, ou a religião,
te significativa da viagem, precisamente o troço compreendido isto para além, claro, das pessoas, os ditos luso-descendentes, o
entre o Mar da China e o Mar do Japão, reflectindo desse modo mais importante de tudo. A comprová-lo estão os depoimentos,
o olhar de um civil a bordo entrevistas e fotografias que tenho vindo a recolher e que cons-
do navio coqueluche da Ma-
rinha Portuguesa. Era meu tituem testemunhos inequí-
objectivo documentar a vida vocos de um reencontro de
a bordo, com palavras e ima- culturas distantes, mas indu-
gens, estabelecendo, sempre bitavelmente partilhadas.
que fosse apropriado, um
paralelo com o tempo das Ao chegar a Goa soube
Descobertas. O Vice-Almi- que alguns fundamentalistas
rante gostou da ideia, mas locais tinham perturbado a
logo me foi avisando que o entrada tranquila da barca
máximo que poderia fazer de todos nós na enseada de
era fornecer-me os contactos Mormugão, gritando pala-
necessários e «dar uma pala- vras de ordem e exibindo
vrinha a quem de direito». faixas com dizeres que de-
negriam o nome de Portugal
A tarefa parecia difícil, e, por conta e medida, os ha-
mas o importante é que a se- bitantes de Goa, já que mui-
mente estava lançada e só o tos deles são detentores de
tempo o diria se fruto algum documentos de identificação
germinaria dali ou não. portugueses. Sabia, porém,
A primeira resposta não foi muito encorajadora. Disseram-me que esse não era o sentimen-
que nesse seu périplo a “Sagres” só em casos muito pontuais ad- to da generalidade dos habi-
mitia civis a bordo. Mas não esmoreci. Sabendo do envolvimento tantes daquela província indiana. E a prova disso tive-a na manhã
da Fundação Jorge Álvares no projecto decidi contactar com o de 16 de Novembro quando vi aproximarem-se da “Sagres”, um
Dr. Jorge Rangel, presidente do Instituto Internacional de Macau pouco antes da sua largada do porto de Mormugão, dezenas de
e ex-secretário adjunto do Governo de Macau durante a adminis- embarcações de pesca engalanadas com balões, grinaldas de flo-
tração portuguesa, que de imediato fez chegar o meu pedido ao res, bandeiras portuguesas, repletas de centenas de homens, mu-
Conselho de Administração daquela instituição. lheres e crianças dançando e cantando ao som de música goesa e
dando sentidos vivas a Portugal. Numa das faixas exibidas bem
Em finais de Setembro, quando menos esperava e o sonho de alto podia ler-se: «Viva Portugal. Nós Amamos o Portugal. Boa
navegar na “Sagres” começava a desvanecer-se, recebi um e-mail Viagem “Sagres”». Os marujos, surpreendidos, correram à amu-
da Marinha informando-me que poderia embarcar no porto de rada e corresponderam com acenos e fotografias a tão carinhosa
Mormugão, em Goa, se ainda estivesse interessado em fazer a manifestação de afecto. A presença dos pescadores em festa foi a
viagem. É claro que estava! Pelos vistos, as diligências efectuadas bofetada de luva branca nos denominados freedom fighters, pro-
pela Fundação Jorge Álvares tinham surtido efeito e eu finalmen- motores das manifestações anti-portuguesas dos dias anteriores.
te iria ter oportunidade de sentir na pele um pouco daquilo que A minha integração a bordo da Sagres foi tão imediata e es-
sentiram os marinheiros portugueses de antanho. pontânea quanto a manifestação dos pescadores de Mormugão. E
devo isso à excelente recepção por parte da «gente da casa», fosse
Finalmente iria concretizar um sonho antigo e, no entanto, sen- do comandante Pedro Proença Mendes, do imediato Fonte Ro-
tia-me algo retraído, como se fosse um intruso. Não conhecia pes- drigues e dos seus oficiais, que me puseram à vontade e em cuja
soalmente qualquer dos tripulantes e com o comandante da barca, câmara partilhei as refeições, fosse da restante guarnição que des-
Pedro Proença Mendes, apenas tinha comunicado via e-mail. A de logo se disponibilizou para o que fosse necessário. Bem cedo
contrapartida para esta oportunidade que a Marinha Portuguesa me inteirei que havia ali muita vontade de relatar os pormenores
me estava a dar era a divulgação junto do grande público do último da viagem e, sobretudo, falar com alguém que lhes recordava o
troço da viagem de circum-navegação, fosse através da publicação Portugal que tinham deixado há onze meses e ao qual ansiavam
de algo da minha lavra nos jornais e revistas para onde habitual- regressar, o mais rápido possível. Entre as conversas destaco as
mente colaboro, fosse pela apresentação de um trabalho final em inevitáveis peripécias nos portos de atracagem, as aventuras nas
forma de livro, documentário ou exposição fotográfica. Ora, era longas tiradas no Atlântico e o frio que sentiram quando passa-
isso mesmo o que eu inicialmente pretendia fazer com a matéria- ram o cabo Horn, «o mais belo momento de todos».
10 JANEIRO 2011 • REVISTA DA ARMADA