Page 11 - Revista da Armada
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O espírito de camaradagem e bom acolhimento na integração nos ciclos de sono, resultado da necessidade de render a guarda, dia
de vida de bordo traduziu-se inicialmente em pequenos ges- após dia, pesa ao fim de alguns anos e o ar salgado também desgasta.
tos como um simples convite para beber uma cerveja ou jantar Para ajudar a descontrair, entre as muitas actividades de lazer, destaco,
com os camaradas do sector das máquinas ou os camaradas das pela sua originalidade, os desafios de futebol de convés, modalidade
manobras; passou depois por um surpreendente partilhar de as- desportiva inventada pelos marinheiros da “Sagres”, entusiasticamen-
suntos de foro pessoal (angústias, alegrias, tristezas, frustrações) te disputada por equipas improvisadas no momento.
que se discutiam em amena cavaqueira, embora sempre com o
tratamento respeitoso de você para aqui e você para acolá. Apesar E depois de tudo isto havia espaço ainda para a contemplação.
do ar descontraído daqueles lobos do mar da “Sagres” via-se que O mar, esse infindo estendal de azul profundo, inspira. O mar e o céu.
estavam em alerta permanente, prontos a assumirem as suas fun- O primeiro, sem qualquer presença visível no horizonte; o segundo,
ções a qualquer altura. limpo de nuvens. Visitantes, tão só uns pequenos pássaros, adeptos de
longos voos solitários que habitualmentefazemdo convés o seu porta-
Da minha parte, tudo fiz para me integrar na guarnição e res- -aviões. Na crista das ondas cardumes e cardumes de peixes-voadores
ponder assim ao apelo do comandante Proença Mendes quando e de quando em vez grupos de golfinhos, que as baleias, essas, man-
este falava em fortalecimento do espírito de equipa como «pilar têm-se ao largo, indicando as suas rotas com fortes e regulares esgui-
essencial da necessária prontidão e do sucesso do nosso navio». chos de água.
E assumi pessoalmente este «nosso» porque também passei a
considerar a “Sagres” como A navegação, inicialmente tranquila, permitia que fossem iça-
uma segunda casa. das as velas latinas. Somente.
Avançava-se sobretudo com a
Embora soubesse que iria força do motor. A constante on-
preencher grande parte do dulação, embora não fosse forte,
tempo de navegação com obrigava-me a um jogo de cin-
o registo daquilo que via e tura quando me movimentava
sentia – no fundo, o exercício na barca. Enjoo? Apenas sentia
das minhas funções – trouxe um vazio na cabeça, como se
na bagagem uma data de tivesse uma forte quebra de ten-
livros e textos por comple- são arterial, e uma grande sono-
tar destinados aquelas que lência, sintomas que conseguia
eu pensava serem as horas quebrar com algumas simples
mortas. Enganei-me redon- buchas entre as refeições.
damente. E ainda bem. O O mar Índico foi percorrido
dia-a-dia a bordo, ao contrá- o mais rápido possível, devido
rio do que se possa pensar, ao perigo da pirataria. Se assim
é farto em acontecimentos. não fosse tínhamos ido o tempo
Logo pelas 7 da manhã o todo à vela. «Não se preocupe,
moço do clarim toca a alvo- faremos isso no mar Vermelho»,
rada e uma vez tomado o tranquilizou-me o comandante.
pequeno-almoço e executada a formatura no convés seguem-se
uma série de actividades previamente discutidas entre oficiais, O oficial de quarto na ponte, por sua vez, mostrava-me um mapa com
sargentos e praças. diversos pontos devidamente assinalados a lápis, alguns deles muito
perto da rota definida pela “Sagres”. Todos aqueles sinais representa-
A guarnição mantinha-se ocupada em múltiplos afazeres ao lon- vam ataques de piratas somalis.
go do dia. Havia que preparar os lanudos que evitam que as velas ro-
cem nos cabos de aço, protegendo-as; havia que lavar o convés com Na ponte, mesmo em frente da casa de navegação estavam em per-
água do mar, e «quantas mais vezes, melhor», pois a água salgada manência quatro marinheiros, mãos e braços firmes no leme de três
conserva o madeiro; havia que se certificar da solidez das amarras; rodas que dá a direcção à barca. A poucos metros dali, a ré, no tomba-
havia que raspar o verniz das madeiras; havia que limpar e polir os dilho, passei muito do meu tempo e até ali cheguei a dormir, quando a
metais da barca; havia que fazer faina disto e daquilo e quando tudo lua estava a crescer e a noite mantinha-se quente. Um óptimo local para
parecia pronto havia ainda a convocação para os exercícios, de in- apreciar o gracioso esvoaçar da bandeira das quinas no topo do mastro
cêndio a bordo ou de resgate de homem ao mar, passando o convés da mezena. Para que não houvesse dúvidas ou se criassem confusões,
a ser o palco de uma operação de salvamento, com o comandante a sempre que a navegação o permitia, substituía-se por uma de maior
supervisionar. dimensão.
Como poderei esquecer o momento em que vi vários marinhei- Para mim, a barca era como uma ilha ambulante, um universo po-
ros subiram de uma assentada ao traquete e ao mastro principal para voado por diferentes e fascinantes personagens com as quais me cru-
desfraldar as gáveas e assim poder tirar proveito da força do vento? zava e com as quais interagia, partilhando experiências e cimentando
Como poderei esquecer a imagem desses autênticos alpinistas, arnês as sempre preciosas amizades. A barca era uma aldeia, um terreiro,
em redor da cintura, ágeis silhuetas em contraluz com um sol laranja uma praça, um espaço colectivo que percorria de uma ponta à outra,
acabadinho de nascer, logo depois em contraste com um céu azul à acabando por me ir deitar junto ao gurupés, para ali ficar, de olhar fixo
medida que a manhã progredia? Como poderei esquecer a primeira na lua minguante que, devido ao constante movimento, parecia passar
vez que vi ao perto as cruzes de Cristo vermelhas cosidas no pano das de um lado para o outro do topo do mastro principal. O resto de lua e
velas, símbolos maiores da barca? todas aquelas estrelas visíveis. Pura magia, um sonho que se concreti-
zava. Sempre soube que me iria sentir como um peixe na água nessa
Dizia o filósofo Sócrates, séculos antes da nossa era, que existiam barca do Infante.
três tipos de pessoas: «os vivos, os mortos e os que andam no mar».
Máximaquebemcedofariapartedovocabuláriodosmarinheiros.Pois Fotos: Guta de Carvalho
é. Isto de andar embarcado tem muito que se lhe diga. A irregularidade
Joaquim Magalhães de Castro
11REVISTA DA ARMADA • JANEIRO 2011