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A queda de um mito
Oprimeiro Secretário Geral da
NATO, Lord Ismay, terá afirma- ser bem diferente ter tropas a combater pela Rússia ao esforço de guerra no Afe-
do que a Aliança fora criada com no Afeganistão, ou ter tropas a morrer ganistão, conjugados com a reformulação
o propósito de “manter os americanos no Afeganistão – o que sucede sobretudo das bases do sistema de Defesa Anti-
dentro, os russos fora e os alemães em com os americanos. -Míssil, permitiram uma aproximação,
baixo”, ou na expressão original “keep the com materialização imediata no Conceito
americans in, the russians out and the germans Tudo isto, associado à percepção do Estratégico de Lisboa, que aponta para
down”. Esta frase tem sido frequentemen- gigantismo dos desafios de segurança uma “parceria forte e construtiva, basea-
te citada, pois sintetiza de forma cirúrgi- e defesa que se põem hoje em dia, tem da na confiança mútua, na transparência
ca alguns propósitos que terão estado na levado os americanos a dinamizarem a e na previsibilidade”. A cooperação com
génese da Aliança Atlântica. Só tem um criação de parcerias com outros actores re- a Rússia na questão da Defesa Anti-Míssil
problema: não há nenhuma prova de que gionais. Os EUA continuam, assim, “in”, ficou, mesmo, consagrada no documen-
Lord Ismay alguma vez a tenha proferido! mas cada vez mais empenhados numa to, mostrando que a Rússia está cada vez
A citação é, pois, um mito.Contudo, veio- rede de parcerias estratégica, que permita menos “out”.
-me à memória ao ler o novo Conceito ultrapassar as especificidades da NATO,
Estratégico de Lis- nomeadamente as que decorrem da li- Finalmente, analisemos o “keep the
boa. Isto porque ele mitação geográfica do âmbito da Aliança germans down”. Esclarecidas, em 1994,
representa, numa (apenas aberta, para alargamento, a países
leitura pessoal e europeus) e as que resultam da dificulda- algumas dúvidas
conjugada com al- de ou da morosidade na resposta perante constitucionais re-
guns desenvolvi- alguns problemas de âmbito securitário lativas ao emprego
mentos recentes, a (em função de as decisões serem, obriga- das suas Forças Ar-
queda desse mito. toriamente, tomadas por consenso entre madas no exterior,
os 28 aliados). a Alemanha já é o
Comecemos pelo terceiro aliado com
“keep the americans Olhemos agora para o “keep the rus- maiores despesas
in”. Os EUA têm sians out”. Com o fim da guerra-fria, a com a defesa (atrás
repetidamente Rússia já tinha deixado de ser o principal dos EUA e do
reafirmado o seu oponente da Aliança Atlântica. O novo Reino Unido) e é,
compromisso em- Conceito Estratégico marca mais uma também, o terceiro
penhado com a evolução no relacionamento com a Rús- país em número de
NATO. Todavia, é sia, que passa, agora, a ser encarada como efectivos militares
possível notar dois um parceiro estratégico, apesar das sus- (depois dos EUA
aspectos que, ine- peições recíprocas e das ambiguidades e da Turquia). Em
vitavelmente, des- que têm marcado esta relação e que não consonância com a
gastam a robustez do elo transatlântico. desaparecem com um simples documen- sua cada vez mais
to. De qualquer maneira, os apoios dados forte posição in-
O primeiro é o reduzido investimento ternacional, a Alemanha não hesitou em
dos países europeus na defesa. Apesar abrir a “caixa de Pandora” da questão
de os aliados se terem comprometido a nuclear, no processo de negociação do
convergir para orçamentos de defesa cor- Conceito Estratégico, defendendo uma
respondentes a 2% do PIB, apenas quatro menor ênfase no papel das armas nucle-
nações europeias cumprem essa meta, en- ares e um maior empenho na desnucle-
quanto os EUA se fixam nos 4% do PIB. arização, o que provocou uma clivagem
Isso faz com que os americanos sejam res- com os EUA e, sobretudo, com a França.
ponsáveis por 73% dos gastos de todos os A cuidada redacção final do documento
membros da NATO com a defesa. assinado em Lisboa acaba por reconhe-
cer que a “NATO continuará uma alian-
O segundo é a falta de vontade ou a in- ça nuclear”, mas acrescentando (muito
capacidade da grande maioria dos aliados por influência teutónica) o objectivo de
em darem um contributo efectivo para as prosseguir a redução do arsenal nuclear
operações em curso no Afeganistão. De no futuro. A Alemanha não está, decidi-
facto, os EUA fornecem 71% das tropas damente, “down”!
da NATO aí presentes. E se é verdade que N. Sardinha Monteiro
todos os 28 aliados estão a contribuir para
o esforço de guerra, não é menos verdade CFR
8 FEVEREIRO 2011 • REVISTA DA ARMADA