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A MARINHA DE D. SEBASTIÃO (21)
A defesa do reino e a política europeia
Na Marinha de D. Sebastião (1) tive O primeiro grande conflito que leva o rei a este plano caiu de chofre em Portugal com as
ocasião de explicar a dinâmica que afastar-se da tutela de Filipe II prende-se com cartas escritas a D. Sebastião, a Dª Catarina e
ligava todos os Habsburgos, sobera- as tentativas de acordo de casamento, com- ao cardeal D. Henrique, onde Filipe vincu-
lava o argumento do superior interesse da
nos que eram nos reinos da Península Ibérica, pletamente manipuladas pelo seu tio castelha- cristandade, que o obrigara a comprome-
Itálica, Flandres, Sacro Império, etc. Quando no, e tendo em conta interesses próprios – ou ter-se com o casamento do sobrinho, mes-
morreu D. João III evidenciou-se esta teia fa- interesses dos Habsburgos na Europa – sem mo sem o ter consultado. Era uma afronta
miliar bem ordenada e sob a tutela do “pa- respeitar o jovem rei português. Estes projectos inaceitável que evidencia a forma como o
triarca” Carlos V, mesmo depois de este ter ab- de aliança matrimonial passavam, inicialmen- sucessor de Carlos V se via a si próprio, no
dicado do título imperial e se ter retirado para te, por casar o seu sobrinho português com contexto da vasta família dos Habsburgos
o mosteiro de Yuste. Este relacionamento fa- Isabel de Áustria, possibilidade que tinha sido
e do xadrez político europeu.
miliar tradicional, condicente com o sistema D. Sebastião reagiu com violência e não
político centrado na figura de um soberano aceitou a decisão de seu tio. Dª Catarina
viu-se obrigada a escrever uma longa car-
absoluto e na obediência a uma fidelidade ta a seu sobrinho Filipe, expressando uma
piedosa compreensão pelas razões da fé,
pessoal, é mal compreendido na actualida- mas criticando-o na forma como agira. A
verdade é que todos contavam com a ce-
de, onde as nações são soberanas e estão aci- dência do rei português, o que nunca veio
a acontecer. O rei estava saturado dos jogos
ma de qualquer figura governativa. Mas são palacianos, dos conflitos entre os próximos
de D. Henrique ou da rainha, das guerras e
muito evidentes os sinais de que o mundo tensões que enfadaram e consumiram a sua
infância, alimentando um ódio secreto que
europeu do século XVI não seguia os valores só estava à espera de oportunidade para se
manifestar. Não, não iria casar com Marga-
patrióticos que herdámos do século XVIII, e rida de Valois, fosse porque isso se tornara
uma questão de honra, fosse porque isso
a rede de poder estabelecida pelos Habsbur- era um excelente pretexto para protelar o
casamento que não desejava.
gos assumiu um carácter que transcende
O matrimónio de Isabel de Áustria com
os próprios conceitos formais de soberania. Carlos IX, reabilitou para o mundo católi-
co um rei que estivera muito próximo dos
Carlos V foi o verdadeiro patriarca, com calvinistas, acabando por desencadear
uma intensa perseguição aos protestantes
influência em todos os espaços governados franceses e criando outro tipo de ameaças.
Coligny, o célebre almirante que alimen-
por representantes do seu clã familiar. E a tara o projecto de Villegagnon no Brasil
e que representava a facção huguenote
extensão desse processo a Portugal ganha (protestante), sobrevivera à matança e cer-
tamente se viraria para o mar e para a pi-
um sentido muito evidente com a morte rataria, juntando-se aos corsários ingleses.
Quem o advertia era Dª Catarina alertan-
de D. João III, porque o jovem D. Sebastião do para a possibilidade de que Portugal seria
um alvo preferido. D. Sebastião levou-o a sé-
também era um Habsburgo por todas as rio e encetou um conjunto de medidas de de-
fesa militar, que serão motivo de análise em
suas linhas ascendentes. E é curiosa esta di- futuras revistas. Maria Augusta Lima Cruz,
na recente biografia de D. Sebastião, diz-nos
nâmica paralela de poder gerida por Carlos, como foi imediatamente decidido aprontar
uma esquadra de vinte velas, seis das quais
que encaminhou o título de Imperador para seguiriam para os Açores, para escoltar a ar-
mada da Índia. As restantes continuariam os
o irmão, mas reservou o papel de patriarca preparativos para proteger a costa portugue-
sa, contra todos os ataques de piratas.
todo poderoso para o seu filho Filipe II.
* Margarida de Valois foi a célebre “Reine
Nos primeiros anos após a morte de Margot”, casada com Henrique III de Navarra,
mais tarde Henrique IV de França.
D. João III estes jogos evidenciam-se pela ri-
J. Semedo de Matos
validade entre duas figuras que partilham CFR FZ
(ou alternam) a regência, na menoridade
de D. Sebastião, mas continuam após a sua
entronização, na forma como pretendem
manipular o conselho régio e as decisões Retrato de D. Sebastião com 18 anos,
do próprio rei. Seria fastidioso enumerar Alonso Sánchez Coello.
os conflitos entre o cardeal D. Henrique e a
rainha Dª Catarina, bem como a forma como aceite com agrado por D. Sebastião e pelos seus
o monarca atende a uns e outros. E não erra- conselheiros. Sucede porém que o rei espanhol
remos muito ao considerar que o cardeal tem enviuvara pela segunda vez, ficando com duas
uma enorme preponderância, e que a man- filhas do segundo casamento e um filho do pri-
tém de forma sagaz, conseguindo colocar as meiro, que fora jurado como herdeiro do trono.
pessoas certas no lugar certo, rodeando o rei Esse filho era D. Carlos, o príncipe tido como
de conselheiros que lhe estão mais próximos, louco que se deixou morrer na prisão onde
sempre atentos ao que poderiam ser as ten- fora encerrado pelo pai. Filipe tinha de casar
tativas de intrusão da rainha viúva. A argu- outra vez, recomendando os jogos do teatro
mentação historiográfica posterior (sobretu- europeu que escolhesse entre Margarida de
do a que se segue a Alcácer Quibir) assume- Valois ou Ana de Áustria. A primeira já fora
-se de forma maniqueísta, classificando com sua cunhada e a segunda era pretendida por
demasiada facilidade as posturas políticas Carlos IX de França. Na sua altíssima digni-
correntes, como interferências castelhanas dade de patriarca Habsburgo decidiu que
ou resistências nacionais, mas nem tudo era casaria com Ana de Áustria, compensaria os
branco ou preto neste processo, nem todas as desejos de Carlos dando-lhe a irmã Isabel, an-
decisões são tomadas ao arrepio das opini- teriormente destinada a D. Sebastião, e reser-
ões de Dª Catarina (ou contra Castela), como vando para o rei português a última hipótese
possível que era Margarida de Valois*. Todo
muitas vezes se tem interpretado.
10 JULHO 2011 • REVISTA DA ARMADA