Page 12 - Revista da Armada
P. 12

SAGRES
                                               OS PRIMEIROS ANOS

Apartir de 2008, tornou-se particular-         sado permitiu-me compreender melhor o     Depois da entrega formal, os primeiros
        mente difícil escrever seja o que for  Comandante Joaquim Costa, no seu livro  movimentos do navio, já sob bandeira por-
        acerca da SAGRES e da sua histó-       “Cartas de Tempos Idos – No Navio Es-   tuguesa, foram todos relacionados com os
ria, pela simples razão de que já está tudo cola “Sagres” (Ed. Livros de Portugal SA trabalhos a efetuar pelo Arsenal da Mari-
escrito e bem escrito.                         Rio de Janeiro - 1959), no qual relata a sua nha do Rio de Janeiro: em 26/02/1962, foi
Voltar ao tema é correr o risco duma re- vivência de um “tempo” correspondente da muralha para a doca seca, onde perma-
petição, rés-vés com o plágio, se não das àquele a que aqui me refiro, mas relativo neceu até 21/03; de 27/03 a 03/04, esteve
palavras, pelo menos dos temas e do relato à Sagres anterior e às suas primeiras via- atracada primeiro ao cruzador Tamanda-
que o Comandante António Gonçalves fez gens, nos anos vinte do século passado. ré, depois ao Barroso; depois, em abril, na
no seu magnífico livro “SAGRES                                                                           bóia, em frente à Ilha das Cobras
- Construindo a Lenda”: está lá                                                                          (16/04). Dois dias depois, Praça
tudo o que possa interessar acer-                                                                        Mauá, a que se seguiu a regulação
ca do navio, o que torna redun-                                                                          de agulhas (19/04); e finalmente,
dante ou muito difícil acrescentar                                                                       às 15.30 de 25 de Abril de 1962,
algo de novo, tão completa é a sua                                                                       partida para Lisboa, com escala
descrição.                                                                                               prevista em S. Vicente e Funchal
Era nisto que eu ia pensando,                                                                            – previsão que se veio a alterar,
à medida que o autocarro seguia                                                                          como veremos adiante.
a caminho da Junqueira, onde no                                                                          Fique registada a identidade do
Arquivo da Marinha tencionava                                                                            primeiro oficial a entrar de quar-
dar uma vista de olhos no proces-                                                                        to nesta viagem: o Tenente Vilas
so da Sagres, na esperança de en-                                                                        Boas, da Reserva Naval, um “ofi-
contrar alguma coisa que pudesse                                                                         cial de mão cheia”, muito sabedor,
ajudar-me a escrever estas linhas.                                                                       dedicado ao serviço, jovial, educa-
O Arquivo da Marinha tem uma                                                                             díssimo - enfim, um daqueles que
organização excelente, com a efi-                                                                        qualquer câmara de oficiais sem-
cácia discreta dos mecanismos                                                                            pre deseja ter a bordo.
que não são apenas “para vista”                                                                          Depois, na rotina habitual duma
e que realmente funcionam: num                                                                           travessia longa, lá fomos seguin-
instante me foi entregue, com ou-                                                                        do em demanda de S. Vicente de
tros documentos, o primeiro Diá-                                                                         Cabo Verde – destino que se alte-
rio Náutico da Sagres - “numerado                                                                        rou inesperadamente, já em prin-
e rubricado pelo Dr. António Pedro                                                                       cípios de Maio, devido a doença
Cabral de Abreu para registo da na-                                                                      grave do Ten. Moitinho de Almei-
vegação deste navio, em 26/02/1962”                                                                      da, que teve que ser hospitalizado
– bem como outros documentos                                                                             no Recife, obrigando a uma arri-
relativos aos primeiros passos da                                                                        bada a esse porto.
terceira etapa da sua vida no mar                                                                        Recomeçou a viagem em 21 de
- imediatamente posterior aos pe-                                                                        Maio; cinco dias depois cruzáva-
ríodos “brasileiro” e “alemão” de                                                                        mos o Equador, com a habitual
um passado cujo início se reporta                                                                        solenidade e a visita do Rei dos
aos anos trinta e quarenta.          O Comandante Silva Horta no tombadilho da Sagres após a baldeação.  Mares; e em 2 de Junho a Sagres

Aos oitenta e tal anos, já não temos a frie- É curiosa a semelhança transtemporal na entrava, finalmente, no seu primeiro por-
za pragmática da juventude: “sentimos” atitude de relacionamento dos marinhei- to português: Mindelo, S. Vicente de Cabo
para além daquilo que “vemos”, fazendo ros com os seus navios, confirmando a pe- Verde, ao qual viria a ficar para sempre “li-
associações de imagens e de lembranças renidade de um comportamento cuja ori- gada” por elos muito especiais.
perante factos que, quando ocorreram, gem se perde na noite dos tempos, e que Isto da “ligação” de navios a portos é
eram apenas isso mesmo: meros factos, por certo perdurará enquanto o homem talvez um sentimentalismo subtil; mas
completamente neutros do ponto de vista navegar: Joaquim Costa revela factos e sen- os velhos marinheiros, para quem escre-
afetivo e limitados à expressão seca da sua timentos datados de 1927 que, não apenas vo estas linhas, compreendem bem o que
concreta materialidade.                        no essencial, coincidem com os daqueles quero dizer, pelo que me dispenso de dar
Por isso, foi com alguma emoção que que, em 1962, foram ao Brasil buscar outro mais explicações.
reli, a cinquenta anos de distância e num navio com o mesmo nome! Tema interes- No caso da Sagres (aliás, das duas Sa-
contexto global totalmente diferente, pala- sante para a ele voltar um dia!..          gres) Mindelo é, sem dúvida, o seu porto
vras tão simples e inócuas como as clássi- Mas concentremo-nos, por agora, no que de registo “afetivo”, tantas e tantas vezes
cas expressões “Tempo, mar e navegação do se passou em 1962. Quanto aos “anteceden- escalado por qualquer delas. Bem o revela
Diário”, seguidas de referências sintéticas tes” (negociações para a aquisição do navio, a imortal morna de B. Leza, “Selô Selô, é
a “ventos, velas, velocidades, rumos, avista- sua entrega, reparações) consta-me haver já barca Sagres…” dedicada à primeira, mas
mentos”, e todas as demais mil e uma coisas um excelente texto do EngºApresentação – o apropriada, por osmose, pela segunda, a
que se registavam no Diário Naútico - in- competentíssimo e incansável Chefe do Ser- bordo da qual, anos mais tarde, daria o
cluindo a loiça partida “devido ao balanço”, viço de Máquinas, que sempre conseguia seu primeiro espetáculo público formal
para acertar o inventário do despenseiro… persuadir a “bichana” - a alcunha do motor essa grande artista que se chamou Cesá-
Curiosamente, este mergulho no pas- – a dar o seu melhor, quando era preciso… ria Évora.

12 MARÇO 2012 • REVISTA DA ARMADA
   7   8   9   10   11   12   13   14   15   16   17