Page 19 - Revista da Armada
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Nordeste. O que terá então sucedido? Um erro ao resgate oferecendo agasalhos, comida e casas durante a sua última estadia em Portugal, mas
de navegação induzido por cartas de navegação aos sobreviventes. Nas semanas que seguiram o igualmente depois de finais de 1786, após ter
incompletas?7 Dificuldades em manobrar um naufrágio, a operação de resgate levou até Pe- deixado o país.
navio cansado e instável, sobrecarregado, com niche cerca de 40 mergulhadores em apneia
o frete muito pesado e mal repartido no porão, recrutados pelo Reino de Espanha nos quatro Conhecem-se por exemplo variantes das pin-
navegando demasiado perto da costa Portugue- cantos da Europa. Aoperação desenrolou-se sob turas do “San Pedro de Alcântara” em perdição
sa? Sabemos, fruto da investigação e campanhas o olhar muito atento e as instruções do Embaixa- na aproximação das costas e das falésias de
arqueológicas no mar e em terra dirigidas por dor de Madrid em Lisboa, Conde Dom Fernan Peniche. Uma delas, denominada “Naufrágio
Jean Yves-Blot (no mar, 1988, 1996-1999) e Nunez Luego. do S. Pedro de Alcântara”, faz hoje parte da
Maria Luísa Pinheiro Blot (em terra, 1985-1988, Colecção do Conde de Alfarede, tendo sido ex-
1993-1995) e realizadas em Peniche de 1985 Aos mergulhadores estrangeiros juntaram-se os posta e registada em Catálogo publicado pela
(data da primeira campanha geofísica, em terra, locais. Dirigidos pelo Capitão Espanhol Francis- Fundação Ricardo Espírito Santo, em Lisboa10.
em busca da sepultura de catástrofe associada co Xavier Munoz, realizaram durante três anos Perante a importância económica da operação
ao naufrágio) a 1999 (última campanha subma- em Portugal, uma das primeiras grandes cam- de resgate, o grande interesse e curiosidade li-
rina), culminando com estudos de laboratório panhas de mergulho submarino da Época Mo- gadas ao desastre de Peniche, essas obras terão
com o departamento de tribologia (caracteri- derna, recuperando metais preciosos, canhões e seguramente sido compostas pelo artista fran-
zação de micro-relevos em artefactos) da École instrumentos náuticos do navio. Peniche esteve cês, a posteriori, enquanto documento visual
Centrale de Lyon (2002-2004) e com a análise então no “centro” das atenções da Europa. Em da tragédia. São resultado duma interpretação
estrutural do navio no quadro de um doutora- Junho de 1786, os mergulhadores conseguiram artística do acontecimento. Por exemplo, sa-
mento no LAMOP (laboratório de medievistica), levantar o casco do navio afundado e arrastá- bemos hoje que o naufrágio do “San Pedro de
CNRS, Paris 1 Sorbonne (2008-2013), que o -lo para a Praia de Peniche de Cima, onde foi Alcântara” não foi, por si, ocasionado por más
navio embateu no fundo, junto das Rochas da desmontado e os restos do Tesouro, presos nos condições meteorológicas. Assim, Pillement rea-
Papoa, a uma velocidade de interstícios do cavername, recuperados. lizou várias encomendas, partindo duma mes-
6 nós, quebrando-se em duas
partes. O porão afundou-se de Curiosamente, a saga do “San Pedro de Alcân- ma composição iconográfica
imediato, arrastado pelo peso tara” não terminou aí. “El Vencejo”, o navio des- à qual fez várias modificações
da carga, mas o convés con- tinado ao transporte dos sobreviventes e duma de pormenores (por exemplo
tinuou a flutuar e avançar em parte da carga de cobre salvada do naufrágio e a posição do navio, a loca-
direcção da costa algum tem- dos seus sobreviventes, recuperado na Papoa, lização dos sobreviventes, o
po antes de, por sua vez, se afundou-se por sua vez num vendaval, 3 meses estado do mar e as condições
afundar. Sabemos igualmente depois, um pouco a sul de Peniche, na Baía da atmosféricas, o tratamento
que nesse dia e hora precisas, Consolação. Novamente desapareceram 92 dos céus etc.) Além da pintura
a maré estava particularmente pessoas. Falou-se então de carga e de tesouro que se encontra em Lisboa, o
baixa8, factor certamente deci- “malditos”. Novamente uma parte da carga teve Museu Soares dos Reis, do
sivo para a catástrofe, atenden- de ser recuperada do fundo do mar e enviada Porto11, tem no seu espólio
do à configuração rochosa da para Espanha, desta vez por via terrestre. uma obra muito semelhante.
costa e dos fundos. Fora de Portugal, o “Museum
AS OBRAS DE PILLEMENT EM of Metropolitan Art/MET” de
Cento e vinte e oito pesso- TORNO DO NAUFRÁGIO E DO Nova York12, a “Galeria del-
as dos dois sexos, incluindo RESGATE DO “SAN PEDRO DE le Uffizi”13 em Florença têm
crianças desapareceram no ALCÂNTARA”: PINTURAS E igualmente nas suas colecções
naufrágio. Duzentos e setenta GRAVURAS obras a pastel de Pillement,
sobreviveram. que representam um navio
O naufrágio e a operação de resgate que se em apuros junto de uma costa rochosa. Pese
A terrível notícia chegou sem muito tardar a seguiu, ocupou mês após mês as páginas das embora algumas variações, os pormenores das
Madrid. Causou grande preocupação. Um dos Gazetas da Europa e do Novo Mundo, de Ma- costas e dos rochedos apresentam nessas obras
prisioneiros mais importantes transportados a drid a Londres, passando por Paris e Amsterdão. muitas correspondências com a pintura do ca-
bordo, Fernando Tupac Amaru, tinha sobrevivi- A repercussão internacional do salvamento do tálogo da Fundação Ricardo Espírito Santo de
do ao naufrágio, encontrando-se a monte, pelas precioso carregamento foi de importância tal, Lisboa e com a pintura da colecção do Museu
falésias de Peniche9. Mas sobretudo a perda da que o pintor paisagista francês acabou por retra- Soares dos Reis, do Porto.
carga do navio e a sua colossal importância eco- tar várias vezes o mesmo tema, nomeadamente Existe uma segunda série de quadros, estes a
nómica faziam pairar a ameaça dum desastre óleo, de Jean Baptiste Pillement, dedicados aos
financeiro em Espanha. Estima-se que, na época, momentos precisos do naufrágio e à posterior
o metal precioso transportado, e que terá resulta- operação de resgate do tesouro do “San Pedro
do de vários anos de mineração no Peru, repre- de Alcântara”. Estas obras são certamente as
sentava cerca do PIB anual da colónia e de 10% mais importantes para a compreensão do que
do valor de toda a massa monetária em circula- sucedeu ao navio. Dizem-nos vários especialis-
ção em Espanha. O facto dos restos do navio se tas14 que Pillement pintou um primeiro quadro
encontrarem em águas pouco profundas (6,4m a óleo a partir dum desenho que realizou no
a 10,5m, consoante as marés), levaram o Rei de local, em Peniche.
Espanha a encarar rapidamente a organização A esse propósito, existem poucas dúvidas
e envio para Portugal duma grande expedição que o artista francês se tenha deslocado a Pe-
de resgate submarino da carga, que de facto foi niche e à península da Papoa, cerca de um
pioneira na Europa. mês após o naufrágio, atendendo à perspec-
tiva muito realista das rochas e da costa que
Houve negociações imediatas entre os dois retrata nas suas pinturas. Posteriormente, o
Estados da Península Ibérica, tendo o Reino de artista pintou de novo, e por duas vezes, o
Portugal manifestado a mais ampla colabora- naufrágio e o salvamento, primeiro em Es-
ção, e apoio, nomeadamente logístico, admi- panha, em 1788, e depois no Sul de França,
nistrativo e fiscal (por exemplo através dum de- em 1792. No que concerne os dois quadros
creto da isenção de impostos sobre os achados). pintados em Espanha, sabemos, graças às
A população de Peniche, por seu lado acorreu REVISTA DA ARMADA • MAIO 2013 19