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A OBRA DE JEAN BAPTISTE PILLEMENT
E O AFUNDAMENTO E RESGATE
DA NAU ESPANHOLA “SAN PEDRO DE ALCÂNTARA”
No âmbito da extraordinária exposição de campestres e foi decorador de Palácios4 e autor provenientes das minas do Peru (603 toneladas
pintura organizada pela Fundação Ca- de «chinoiseries». No registo das “Marinhas”, de Cobre em barra, 153 toneladas de prata e
louste Gulbenkian em Lisboa, sobre o deixadas por Pillement em Portugal, contam-se 4 toneladas de ouro em moedas). Levava tam-
Tema “As Idades do Mar”, que decorreu de fins muitas obras a pastel, bem acabadas, dedica- bém nos seus porões uma importante coleção
de Outubro de 2012 a fins de Janeiro 2013, esti- das a vistas de Lisboa ribeirinha, do Tejo e do botânica e uma valiosa coleção de peças de
veram expostas duas magníficas obras do Pintor seu Estuário. Ao lado de algumas obras de valor cerâmica pré-hispânica, da Cultura Chimu, fruto
Jean Baptiste Pillement (1728-1808), artista pai- quase topográfico5, a sua produção comporta das campanhas conduzidas pelos dois cientistas
sagista francês de renome. Essas duas telas, hoje trabalhos soltos, envoltos em alguma fantasia espanhóis, Ruiz e Pavon, na Região de Tama.
propriedade do Museu Nacional de Arqueologia com cenários que propõem vistas costeiras e Registaram-se de facto várias anomalias à par-
de Lisboa, foram adquiridas por um generoso (e portuárias pitorescas, com cenários idealizados tida da viagem. Na investigação levada a cabo
anónimo) mecenas, em leilão internacional no ou imaginários, inspirados no litoral Português por Pierre Yves Blot, foram identificadas «duas
Mónaco, em 1987, e depois doadas ao Estado e animadas por pescadores e pequenas embar- partidas», de Callao, no Peru, uma das quais
Português (IPPC - Instituto Português do Patri- cações de todos os tipos. abortada, marcada pelo falecimento do primei-
mónio) (Ver Pintura nº1 e Pin-
tura nº 2). É a invulgar história Ao estilo mais puro e segundo a temática da ro responsável técnico pela
desses quadros e da temática pintura da época das luzes, Pillement não deixou operação, e o posterior coman-
marítima passada e contempo- de tratar com frequência o tema das tempestades do assumido pelo Brigadeiro
rânea que lhes está associada, e dos naufrágios, num registo pré-romântico no D. Manuel de Eguia. Foram
nomeadamente um célebre qual pintava navios em perdição e homens em igualmente identificados inú-
naufrágio ocorrido ao largo de luta com uma natureza desenfreada. As duas pri- meros indícios duma gigantes-
Peniche no ano de 1786, que meiras passagens por Portugal, certamente muito ca “corrupção” em torno da
nos propomos relatar. contribuíram para alimentar esses registos. valiosa carga do “San Pedro de
Alcântara, a sua operação de
PILLEMENT O “SAN PEDRO DE ALCÂNTARA” transporte e de carregamento,
EM PORTUGAL - HISTÓRIA DUMA VIAGEM E factores que porventura terão
DUMA TRAGÉDIA MARÍTIMA sido determinantes na explica-
Jean Baptiste Pillement, «pe- ção da tragédia que se irá seguir.
queno mestre de Lyon», re- Se muitos dos naufrágios retratados por Pille- Por entre os seus 419 passagei-
alizou uma série de estadias ment estão feridos de maior ou de menor fanta- ros, o “San Pedro de Alcântara”
artísticas que ficaram célebres sia, o caso do desaparecimento do navio espa- transportava igualmente vinte
em Portugal, nos finais do Séc. nhol «San Pedro de Alcântara», acontecimento e quatro índios (homens, mu-
XVIII, onde foi muito aprecia- trágico-marítimo que ocupou as atenções e as lheres e crianças), importantes
do e conheceu um enorme sucesso comercial1. crónicas do seu tempo, foi tratado pelo pintor prisioneiros políticos ligados à
Formado em desenho nos Gobelins, artista iti- francês, durante e depois da sua última estadia rebelião de Tupac Amaru de 1781-1783. Entre
nerante, talentoso e em voga nas Cortes e nos em Portugal, de forma coerente, extremamente eles, Fernando Tupac Amaru, filho mais jovem
Salões de toda a Europa2 durante o período das precisa e verdadeiramente excepcional. de José Gabriel Tupac Amaru, descendente da
Luzes, impôs-se sobretudo graças à sua perí- Dinastia Inca e Chefe duma revolta que tinha
cia no pastel. Pela sua temática e a sua paleta, O Navio de Guerra espanhol “San Pedro de abalado o Império Colonial Espanhol6.
acabou por dar continuação em Portugal, a tra- Alcântara”, de 64 canhões, tinha sido construí- A longa travessia foi muito acidentada. De
balhos iniciados em Itália 50 anos mais cedo do no Arsenal da Havana em 1770. Proveniente facto, a carga excedia no dobro o limite normal
por pintores franceses como Claude Gelée de Callao, no Peru, de onde zarpou em 1784, o razoável para um navio com o deslocamento
(conhecido por “le Lorrain”), ou mais ainda por navio transportava para Cádis, em Espanha, uma e as características do “San Pedro de Alcânta-
Claude-Joseph Vernet. preciosa carga de matérias primas e os tesouros ra”, o que obrigou o navio a fazer uma primei-
ra escala de urgência em Conception, porto
Pillement visitou três vezes Portugal, no âmbito da costa Chilena, e depois regressar a Callao.
das suas peregrinações pela Europa. O sua pri- Deu-se uma segunda partida de Callao. Nessa
meira passagem por Lisboa teve lugar em 1755 nova viagem e após ter dobrado o Horn, o na-
durante o Ministério de Pombal, período em que vio sobrecarregado e ameaçado por inúmeras
o artista foi contratado pela Real Fábrica de Se- infiltrações de água, teve de fazer nova escala
das. Deixou de forma precipitada o País, fugindo forçada de quatro meses no Rio de Janeiro,
à Inquisição3 e dessa forma escapando também para reparações. Daí zarpou, rumo à Europa,
ao Terramoto. Pillement regressou à capital por- em princípios de 1786, mais de um ano após a
tuguesa em 1766 e de forma mais prolongada sua primeira largada de Callao!
de 1780 a 1786, última viagem do seu período Na noite de 2 de Fevereiro de 1786, entre as
português. É essa estadia e a produção do artis- 10h30 e as 11h00 da noite, na altura das Costas
ta em torno do navio “San Pedro de Alcântara” Portuguesas e rumo a Cádis, o navio embateu
que, para efeito deste artigo, nos interessa mais nas rochas da península da Papoa, situadas a
particularmente. norte da península de Peniche.
Segundo testemunhas e sobreviventes, as con-
Pillement teve uma grande produção artís- dições meteorológicas nessa noite eram clemen-
tica enquanto pintor de vistas e de marinhas. tes e a visibilidade razoável, com vento fraco de
Bastante prolífico, também pintou paisagens
18 MAIO 2013 • REVISTA DA ARMADA