Page 19 - Revista da Armada
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In Larger Freedom reitera a necessidade de um novo consenso                                                                             REVISTA DA ARMADA | 483
sobre a questão do uso da força nas relações internacionais.
Desta feita, é reafirmada a importância de se promover e refor-    aproveitamento por quem tenta justificar ações unilaterais contrá-
çar o processo multilateral, por forma a procurar resolver os de-  rias ao espírito enformador desta Carta na manutenção da paz e
safios e os problemas internacionais, no rigoroso respeito dos     da segurança coletiva. Nas situações que envolvem uma grande
princípios explanados na Carta e do Direito Internacional (ONU,    potência, as ambiguidades e fragilidades do mecanismo das ex-
2005).                                                             ceções à proibição do uso da força tendem a contribuir para au-
                                                                   mentar a controvérsia da argumentação em torno da causa justa,
  Por conseguinte, as suas disposições são suficientes para        descredibilizando a ONU. As ações desta organização internacio-
resolver todo o tipo de ameaças à paz e segurança interna-         nal surgem inquinadas, à partida, pelos fatores do financiamento
cional, não havendo necessidade de reescrever ou reinter-          e da capacidade do uso da força. Com efeito, os maiores contri-
pretar o seu artigo 51º. Com efeito, alterar este artigo seria     buintes são os Estados mais poderosos e cujos interesses nacio-
como abrir a “caixa de Pandora”, sem grandes hipóteses de          nais tentam fazer prevalecer, face aos Estados menos poderosos
se vir a conseguir o consenso desejado, conforme sublinha          e dotados de menores recursos financeiros, situação que se re-
o Vice-almirante Reis Rodrigues. Este estrategista afirma que      flete na eficácia das ações de intervenção perpetradas sob a égi-
subsistem os critérios1 propostos por Kofi Annan para a legiti-    de da ONU.
mação do uso da força, em complemento aos critérios legais
previstos na Carta, os quais, apesar de ajudarem a clarificar        Apesar destas vicissitudes, esta é ainda a única instituição na
as discussões futuras nesse âmbito, não deixarão de estarem        qual o uso da força surge legitimado e legalizado, e não obstan-
sujeitos a interpretações subjetivas, consoante os interesses      te as dificuldades acrescidas na tipificação de agressão, com a
nacionais em discussão no tabuleiro do xadrez da política          emergência de novos tipos de ameaças e novas fontes de confli-
mundial (Rodrigues, 2005).                                         tualidade, a ONU é, ainda, um fórum de diálogo entre 193 países.

Novas causas justas para a                                           Daí considerarmos que as situações conflituantes resultantes
guerra?                                                            destas exceções não justificam de per se a necessidade de uma
                                                                   reformulação do artigo 51º no atual contexto estratégico. Alterar
  Na guerra no Iraque, em 2003, foram apresentados diversos        este artigo poderia dar azo à possibilidade da Carta refletir as am-
argumentos para impedir o uso de armas de destruição ma-           bições nacionais de certas potências, em detrimento do interes-
ciça por parte do regime iraquiano, ou por grupos terroristas,     se comum dos “povos das Nações Unidas”, nomeadamente, atra-
nomeadamente, os de intervenção humanitária e de legítima          vés da integração de conceitos já presentes nas respetivas estra-
defesa preventiva. Estes novos argumentos tendem a assu-           tégias nacionais, como é o caso dos conceitos de defesa preemp-
mir-se como novos critérios de causa justa ou de legitimação       tiva e preventiva, presentes na estratégia americana. Como re-
da guerra. Esta situação é particularmente relevante e preo-       ferido anteriormente pelo Vice-almirante Reis Rodrigues, alterar
cupante, se considerarmos a ambiguidade criada no caso da          este artigo seria como abrir a “caixa de Pandora”, correndo-se
ausência de resoluções do CS, como na invasão do Iraque e          igualmente o risco da desclassificação dos critérios legais de legi-
na intervenção militar da Aliança Atlântica durante a crise do     timação do uso da força, lançando suspeitas sobre a credibilida-
Kosovo, em 1999. Esta última ação foi justificada com base         de da argumentação de uma causa justa.
nos seus fins humanitários, com o objetivo de pôr termo ao
“massacre” que estava a ocorrer naquela província sérvia,                                                                        Luís F. do Amaral Arsénio
pelo que, apesar de criticada, esta intervenção foi considera-                                                                                            CTEN
da muito próxima da legalidade.
                                                                                                                                          Membro do CINAV
  As conclusões de um estudo elaborado em 2001, por ini-                                                                           luis.arsenio@gmail.com
ciativa do Governo do Canadá, inverteram o ónus deste con-
ceito, substituindo a ideia de um direito de intervenção pela        Notas
“responsabilidade de proteger”, posteriormente consagrado            1 Complementarmente à Carta, o CS deve considerar cinco critérios para a legitima-
no relatório In Larger Freedom. Logo, cada Estado passou a           ção do uso da força: ameaça grave; objetivo de colocar fim à ameaça; último recurso;
ser responsabilizado pela proteção das suas populações con-          proporcionalidade; e balanço das consequências (ONU, 2004).
tra o genocídio, os crimes de guerra, a depuração étnica e os
crimes contra a humanidade, pois, caso contrário, o CS po-           Bibliografia
derá agir coletivamente, de forma atempada e decisiva, nos           . Abreu, E. G. (2010). A ONU e o Uso da Força em Operações de Paz: uma Agenda
termos previstos na Carta, incluindo no âmbito do capítulo           para a Imposição da Paz? Tempo Presente.
VII (Teles, 2007).                                                   . Allain, J. (2004). The True Challenge to the United Nations System of the Use of
                                                                     Force: The Failures of Kosovo and Iraq and the Emergence of the African Union.
  No entanto, a justificação de guerra preventiva como cau-          Max Planck Yearbook of United Nations Law , pp. 237-289.
sa suficiente para o uso da força é a que gera menos con-            . Johansson, P., & Amer, R. (2007). The United Nations Security Council and the
senso na comunidade internacional. Esta constatação foi pa-          Enduring Challenge of the Use of Force in Inter-state Relations. Suécia: Umea Uni-
tente nas reações dos diversos quadrantes, nomeadamente,             versity.
europeus, aquando da intervenção militar da Coligação no             . Moita, M. (2005). Prevenção de conflitos: as políticas da ONU. Janus.
Iraque. Assim, pese embora a estratégia nacional de 2010 re-         . Moreira, A. (2005). Teoria das Relações Internacionais. Coimbra: Almedina.
verta o enfoque dado a este conceito, a estratégia nacional          . ONU. (2004). A more secure world: our shared responsability.
de 2002 assumiu claramente a adoção da defesa preventiva e           . ONU. (1992). An Agenda for Peace Preventive diplomacy, peacemaking and pea-
preemptiva contra ataques terroristas ou proliferação de ar-         ce-keeping.
mas de destruição maciça, apontando como pontos funda-               . ONU. (2000). Brahimi Report.
mentais dessa estratégia: “We must have an intelligence and          . ONU. (2005). In larger freedom: towards security, development and human ri-
warning system that can detect terrorist activity before it ma-      ghts for all.
nifests itself in an attack so that proper preemptive, preventi-     . Rodrigues, A. R. (2005). A reforma das Nações Unidas. Jornal de Defesa e Rela-
ve, and protective action can be taken” (USWH, 2002).                ções Internacionais.
                                                                     . Teles, P. G. (2007). Novidades no direito internacional. Janus .
conclusão                                                            . USWH. (2002). National Strategy for Homeland Security.

  O uso da força ao abrigo do capítulo VII da Carta não é con-                                                                    MARÇO 2014 19
sensual. As novas tipologias de agressão levaram à criação de
uma série de formas jurídicas de resposta aos novos desafios
que, por um lado, procuram resolver o problema da argumen-
tação da causa justa, mas, por outro lado, permitem o seu
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