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REVISTA DA ARMADA | 483
força perante uma ameaça à paz, não precisando de esperar força serve também de pretexto para a prossecução dos interesses
pela consumação de uma agressão, contrariamente ao contex- nacionais por parte de algumas potências mundiais, em detrimen-
to da SdN, onde a guerra era legal desde que fossem cumpri- to dos interesses coletivos, acrescendo o arbítrio, que não pode
dos os pressupostos formais. Apesar desta novidade, a eficá- ser ignorado, decorrente da subjetividade na utilização do poder
cia da sua resposta surge condicionada face ao poder dos in- que cada Estado possui efetivamente (Moreira, 2005).
tervenientes. Ora vejamos, por exemplo, no caso de um confli-
to entre grandes potências, a ONU terá apenas uma capacida- Assim, não é de estranhar que o desconhecimento das medi-
de de intervenção marginal, não sendo também de esperar um das que sejam necessárias tomar pelo CS gerem desconfiança,
papel relevante quando o conflito é entre uma grande e uma especialmente nos pequenos poderes, dos verdadeiros objetivos
pequena potência. Na verdade, apenas poderemos esperar que a da prossecução do interesse coletivo subjacente à Carta, contri-
sua eficácia aumente nos conflitos entre médias e pequenas po- buindo para a perda da eficácia das medidas tomadas no seu âm-
tências (Moreira, 2005). Esta situação reflete o próprio dilema da bito, bem como constitui mais um fator na argumentação da ne-
existência do CS, a sua sobrevivência como regulador da ordem cessidade de se rever as suas disposições.
mundial padece da necessária dependência face às suas prin-
cipais fontes de financiamento e de capacidade do uso da for- A manutenção da paz
ça. Estas situações traduzem a dificuldade da implementação
no terreno das decisões deste Conselho, com eficácia discutí- No cenário estratégico do pós-Guerra Fria emerge uma nova ti-
vel face ao tipo de intervenientes nos conflitos. Com efeito, no pologia de ameaças de características difusas, imprevisíveis e as-
caso de um conflito entre dois países pequenos, o CS intervém simétricas. Assistimos igualmente à prevalência dos conflitos in-
e termina a guerra; num conflito entre um país pequeno e outro traestatais, de que são exemplo as guerras étnicas ocorridas no
grande, o CS intervém e termina o país pequeno; num conflito Leste da Europa. Ao mesmo tempo, a ONU está muito mais ativa,
entre dois países grandes, o CS intervém e termina o CS. não estando já condicionada pela utilização sistemática do veto,
procedendo, simultaneamente, a uma reorganização da estru-
Exceções na Carta ao uso da força tura de apoio às operações de paz. Neste novo contexto, o rela-
tório Agenda para a Paz estabeleceu, em 1992, um novo quadro
Um dos princípios explanados na Carta refere-se ao impedi- conceptual das operações de paz a concretizar no âmbito do ca-
mento do uso da força por parte dos seus membros contra qual- pítulo VII da Carta, apresentando um conjunto de formas jurídi-
quer Estado, ou de qualquer outra ação incompatível com os pro- cas configurado como resposta aos novos desafios, incluindo a
pósitos das NU (nº 4 do artigo 2º). Não obstante, nenhuma dis- diplomacia preventiva (preventive diplomacy); a manutenção da
posição na presente Carta deverá prejudicar o direito de legítima paz (peacekeeping); a consolidação da paz (post-conflict peace
defesa individual ou coletiva, consagrada no artigo 51º, no caso building); e o restabelecimento da paz (peacemaking) (ONU, 1992).
de ocorrer um ataque armado contra um membro das NU, até
que o CS tenha tomado as medidas necessárias para manter a Esta iniciativa teve como objetivo criar os meios necessários para
paz e a segurança internacional. A outra exceção ao uso da força evitar os conflitos, ou para terminá-los se já iniciados, e reconstruir
consiste na atuação decidida pelo CS nos termos do artigo 42º, as condições necessárias para a consolidação da paz, contornando
tendente a garantir a segurança coletiva ao abrigo de uma reso- a necessidade do consentimento das partes quanto à presença de
lução no âmbito do capítulo VII (Allain, 2004). uma força internacional. Assumiu também que uma missão des-
te género podia, ocasionalmente, ser delegada numa coligação de
Alguns autores admitem ainda uma terceira exceção à proibi- Estados-membros, com mandato das NU e liderança de uma gran-
ção do uso da força, baseando-se no consentimento dado por de potência. Para tal, o Secretário-Geral Bouthros Ghali manifestou
um Estado à assistência por parte de outro, com o objetivo de a necessidade de os Estados prepararem unidades militares pron-
debelar uma agressão, quer em resultado de uma sublevação, tas a usar a força para assegurar a imposição da paz, baseadas em
quer por parte de um terceiro Estado. A definição de agressão serviço voluntário, com treino adicional e armamento reforçado
não consta da Carta das NU, e apenas em 1974, através da Re- em relação às forças tradicionais de manutenção da paz (Moita,
solução nº 3314, a AG propôs a sua definição, enumerando as 2005). Posteriormente às forças tradicionais de manutenção da
seguintes ações que podem prefigurar a forma mais perigosa do paz, o relatório do grupo para as operações de paz da ONU, tam-
uso ilegal da força: o uso da força armada sem decisão do CS; bém conhecido por Relatório Brahimi, estabeleceu as condições
bombardeamento; ataque armado contra o território ou Forças mínimas que deveriam ser asseguradas para o êxito das missões
Armadas de outro Estado; bloqueio naval; autorização do uso do de manutenção da paz sob a égide desta organização, dispondo
território de um Estado para que outro ataque terceiro; envio a necessidade da atribuição de um mandato claro e explícito no
de grupos armados ou de mercenários para atacar outro Estado âmbito do capítulo VII e a obtenção do consentimento das par-
(Moreira, 2005). tes em conflito (ONU, 2000). Em setembro de 2005, o relatório
Estas novas disposições, incluídas no capítulo VII da Carta, con-
ferem a responsabilidade ao CS de agir em nome dos seus mem-
bros nos termos do artigo 24º prevendo o recurso à força para a
manutenção da paz e da segurança internacional. Nestas circuns-
tâncias, um Estado pode defender-se de uma agressão ilegítima,
após verificadas determinadas condições restritivas, designada-
mente, a impossibilidade de reagir por outros meios, podendo
utilizar a força desde que de forma proporcional e enquanto du-
rar a agressão, respeitando o direito humanitário, cessando essa
prerrogativa assim que comunique as medidas tomadas ao CS,
que avaliará a necessidade da continuidade dessa atuação.
Desta avaliação resulta uma ambiguidade criada pela dificul-
dade de se conhecerem, em concreto, quais as medidas necessá-
rias que deverão ser tomadas pelo CS para a manutenção da paz
e da segurança coletiva. Na realidade, por um lado, as exceções à
proibição do recurso à força poderão contribuir para a reposição
imediata das condições violadas subjacentes à Carta, evitando
desta forma a sua propagação e acréscimo das consequências para
a segurança internacional. Esta reação tanto poderá surgir por ini-
ciativa dos Estados, como a sua necessidade poderá ser reconhe-
cida pelo CS, no âmbito de um quadro de legítima defesa preven-
tiva coletiva. Mas, por outro lado, esta latitude dada ao uso da
18 MARÇO 2014