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REVISTA DA ARMADA | 493                   71

VIGIA DA HISTÓRIA

"PÊLOS NO CORAÇÃO"

  Esta foi uma expressão que ouvi, entre      vivo, e que também soubera que ele deixa-
os homens do mar de Viana do Castelo,         ra abandonado, na praia do Rio do Ouro, o
com o significado de alguém, ou muito co-     escrivão do navio naufragado, Diogo Coe-
rajoso, ou que era caracterizado por actos    lho, que se encontrava bastante doente.
de grande malvadez.                           Acrescentou ainda que o Coelho havia sido
                                              recolhido e levado para S. Tomé onde en-
  Apesar de, durante um excessivamente        louquecera e tinha morrido.
longo período de tempo, o tráfico de es-
cravos ser encarado como uma actividade         Declarou também que para além dos
comercial legítima e até mesmo respeitá-      dois referidos, o Rodrigues havia abando-
vel, não é menos verdade de que grande        nado igualmente em terra um marinhei-
número dos que se encontravam naquela         ro de nome Pero Afonso, um escravo de
actividade constituíam a escória da socie-    Rui Fernandes de Almada, um grumete e
dade, eram homens de quem se diria que        um moço de nome Joane, apossando-se
tinham “Pêlos no Coração“.                    o Rodrigues das respectivas fazendas e
                                              escravos. Para além do Ganchino, foram
  O personagem a que hoje nos referire-       ouvidos mais seis moradores de S. Tomé,
mos era, sem qualquer margem para dú-         todos eles confirmando o sucedido com o
vida, pela malvadez dos seus actos, clara-    escrivão Diogo Coelho que, em S. Tomé,
mente merecedor do epíteto.                   nos breves momentos de lucidez, acusava
                                              o Rodrigues de o ter deixado abandonado
  Gonçalo Rodrigues, assim se chamava         em terra para morrer. Alguns dos decla-
ele, era dono de navios que andavam, no       rantes acrescentaram mais alguns actos
início do sec. XVI, envolvidos no tráfico de  praticados por aquele mestre, como fora
escravos, cujas malfeitorias que praticara    o caso de ter lançado em terra Gonçalo
eram de tal forma que, mesmo para os pa-      Vaz, capelão do navio naufragado, bem
drões do tempo e dos envolvidos naquela       como mais alguns tripulantes desse mes-
actividade, foram consideradas excessivas,    mo navio. Referiram também que deixara
levando a que o Governador de S. Tomé         presos em S. Tomé marinheiros, tendo-se
mandasse instaurar, nos finais de 1511, um    apropriado dos respectivos bens.
processo para averiguar da veracidade dos
factos que, como era voz corrente, teriam       O documento que se consultou não refe-
sido por ele practicados, factos esses que    re qual teria sido o destino deste negreiro.
incluíam o lançamento ao mar de bebés, o
abandono de tripulantes doentes em terra,                                               Com. E. Gomes
a apropriação dos bens dos doentes que
abandonava, etc…                              N.R. O autor não adota o novo acordo ortográfico.

  Gonçalo Rodrigues era dono dos navios       Fonte
Feco, de que era piloto Jerónimo Fernan-      Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Corpo Cronológico
des Ganchino, e do navio Galocha, de que      III Parte, maço 4, documento 98.
era piloto Martim Vicente, e neles havia
ido à Guiné, por volta de 1506, altura a que
se referiam os actos a averiguar.

  O auto teve início em S. Tomé, em 11 de
Dezembro de 1511, sendo o piloto Ganchi-
no um dos primeiros a ser ouvido, confir-
mando ter vindo no navio Feco, de Gonça-
lo Rodrigues, à Guiné e que ouvira os ma-
rinheiros e mais gente do navio Galocha
afirmarem que aquele teria atirado ao mar,
vivos, bebés de mama filhos das escravas
que transportava a bordo; declarou tam-
bém que vindo ele, Ganchino, no navio Ga-
locha, vira o Rodrigues, junto aos ilhéus da
ilha do Príncipe, lançar ao mar um negro

28 FEVEREIRO 2015
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