Page 49 - Revista da Armada
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pintura, por exemplo, é  uma reali-
                                                                              dade  em  si,  realidade  que  lhe  é
                                                                              conferida  pelo  simples  gesto  de
                                                                              pintar.  Então,  aquilo  a que  usual-
                                                                              mente  se  chama  o  quadro,  e  que
                                                                              o  comum  dos  mortais  associa  à
                                                                              ideia  de  pintura,  deixou  de  ser  a
                                                                              representação  a  que  a  sensibili-
                                                                              dade  do  artista  conferia  especial
                                                                              valor  estético - deixou  de  ser  o
                                                                              elo  de  relação entre o  homem e o
                                                                              objecto  da representação  para se
                                                                              tornar, ele  próprio, objecto.  Basta
                                                                              exam inar  as  três  interpretações
                                                                              de  um  mesmo  assunto - «A lmoço
                                                                              na Erva» - apresentadas por G ior-
                                                                              gione  (séc.  XVI),  Manet  (1 863)  e
                                                                              Riopelle  (1 963)  para  nos  darmos
                                                                              conta disso.
                                                                              O  quadro  acaba  por  se  tornar
                                                                              uma  forma,  um  objecto  que  não
                                                                              é  imagem  seja  do  que  for  e  que
                                                                              só  tem  razão  de  ser  e  realidade
                                                                              na  sua  própria  materialidade  pic-
                                                                              tórica.
                                                                              O  Realismo esforçou-se  por  iden-
                                                                              tificar  o  mais  possível  a  repre-
                                                                              sentação  com  o  objecto,  preten-
                                                                              dendo  abolir a  distância  que,  por
                                                                              força  das  circuntâncias,  sempre
                                                                              separa  um  do  outro.  O  objecto
                                                                              puro  é  inacessível,  por i.sso  o  Im-
                                                                              pressionismo,  para  o  apreender,
                                                                              procurou captar do objecto aquilo
                                                                              que era possível  reter - a  aparên-
        «Elvira  e  o  Artista  diante  do  seu  Cavalete.,  de  Erro
                                                                              c ia.  Noutros  casos,  como,  por
                                                                              exemplo, o de Cezanne, o objecto,
                                                                              dada  a  sua  inacessibilidade,  é
                                                                              posto  de  parte  e  será  recons-
                                                                              truído  pela  pintura.  O  obj ecto  é
                                                                              agora  uma  c riação  própria,  ine-
                                                                              rente  à  pintura.  Esta  deixou  de
                                                                              ser,  portanto,  uma  representação
                                                                              no  sentido  clássico  do termo.  Foi
                                                                              esta  atitude  que  abriu  o  cam inho
                                                                              para a arte contemporânea. Daqu i
                                                                              até à  pintura  como simples gesto,
                                                                              que  tem  a  sua  própria  razão  de
                                                                              ser na vontade de pintar, vai ape-
                                                                              nas um salto. A pintura passa a ser
                                                                              aquilo que o pintor apresenta como
                                                                              tal.  Na fecundíssima variedade de
                                                                              gestos picturais (e Picasso é disso
                                                                              um exemplo)  pode  acontecer  que
                                                                              toda  a  referência  ao  objecto  seja
                                                                              posta  de  parte  - por  desneces-
                                                                              sária - ,  daí  resultando  a  pintu ra
                                                                              abstracta,  sem  referente  objec- "
                                                                              tivo.                            .,

                                                                                                             11
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