Page 154 - Revista da Armada
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ido  levar-me o  seu  abraço  de  adeus  não   um cavalo assustado. Meu corpo sal/Ou no   IJlOr Iliujar 110 próprio flavio que transpor-
          passavam  de pequeninos pontos "O  cais.   beliche.  As galle/as pularam tia cómoda.   tava a minha tralha.
           Eu eslava me despedindo de Novo lorqlle.   Cadeiras,  malas,  sapatos,  roupas,  lUdo   Logo slllgiu um mar;'l/,eiro com ins-
           Era o dia 3 de Abril de 1948.    começou a rolar de UIII lado para o Olllro.   truções:  dellíamos  aguarelar  no  beliche,
             O SS Minule Man, cargueiro dinamar-  A porta do banheiro se escancarou e a go-  promos para qualquer emergência.  E pro-
          quês da Sheppard Une,  dispunha de ape-  lIernanta foi expelida,  calcinha ainda  ar-  lIide/lciou/lOVOS salva· lIidas.
          lias três cabines de passageiros.  Duoseram   riada pelos joelhos:      Os dois bebés dentro da cesta e o meni-
          oellpadas por mim e minha família; a ler-  - Eu sabia! - ela gritava: - Bem que   na pela mão. ali ficamos,  metidos naquela
          ceira,  por um  mis/erioso professor espa-  eu dizia!                ridic!lla jaqlleta. esperando pelo pior.
          nhol, que mal cheguei a ver no momento   - Cale o boca e me ajude aqui.   As OITO horas,  lima  notícia  trazida
          do embarque.                         Ajoelhado, eu femalla conter as crian-  pelo próprio comandante: o fogo  estalla
             Às CINCO horas o navio começou a   ças.  Eliano se agarralla às pernas da mesa   sob conlrolo e tillllOm estabelecido COII/ac-
          jogar. Nova Iorque sumira no linha do 110'   e os dois bebés,  despejado.; do berço, pu·   to com Olllros navios.  Um deles, o poucas
          rizonte.  E o horizonle subia e descia, num   nham  a  boca  no  m/llldo,  rolando  de  cá   horas de nós,  já se aproximalla,  paro um
          balanço cada  vez  mais forle.  Estendi-me   para lá.  Ajudado pela governallla,  conse-  possiveltran.vbordo.
          na cama do beliche, derrotado f?elo enjoo,   gui afeitar as crianças nlllll call/O, com tra-  O  professor espa"hol,  parecendo 11m
           depois de vomitar alé a alma,  no vaso do   lIesseiros e cober/Ores.   bOI/eco 110 seu sah'a-vidas,  metell o nariz
           cubíCIIlo que vinha a ser o nosso banheiro.   Helena  estava  lá pela cozi/lha do 110-  assustado na poria da cabine.
           Por emre as pálpebras cardas,  via um re-  vio,  às  1I0/tas com mamadeiras.  Arrf!stei.   -Que posa? Quepasa?
           bOllllo tie olldas cada vez maiores surgir e   me até ao corredor, tentando descobflr seu   O  comandante  repetill-Ihe,  em  caste-
           desaparecer 110 escotilha, embalando o na·   paradeiro.  Vi  passar,  amparado por 011-  lhano fluente,  o que acabava de nos illfor-
           vio.  Heleno ficara 110 COI/Vês, tentando dis-  tro,  um marinheiro com olhar patético e o   mar.  Depois disse que tinha Olllras provi·
           Irair  Elialla, enldo com pouco me"os de   rosto cober/O de sangue, os dois braços em   dências a tomare sum;u.
           Irês  anos.  Logo ambas se recollriam lam-  carne viva,  a pele chamuscada caindo so-  Tipo  curioso,  esse  comandall/e.  Bo·
           blm:                              bre as mãos como mangas esfrangalhadas   lIaellão,  roslO  vermelho e cabelos cor de
             - Como eslá se senlindo?        de uma camisa.  Atrás dele o contramestre   areia, mais tarde ele me comaria, entre ba-
             -AgOllizallle.                  exclamando em inglês:             foradas  de cachimbo,  consumindo comi-
             Ela  agllemando  firme.  Eu  devia  ter   - Meu Deus, estamos perdidos.   go algllmas latas de cen'eja I/oite adentro,
           mesmo o eSlômago mais fraco.  E a meni-  Ao  ver-me,  procurou  se  recompor,   episódios dramáticos de sua vida no mar.
           ninho simplesmente se divertindo  com  o   respondendo  sumariameme  às  minhas   Tinha  a  respeitável  experiência  de  dois
           balanço do navio. Já Leonora, de dois me-  perguntas aflitas:       I/al/frágios duraI/te o guerra: um torpedo
           ses,  jazia na cabine,  demro de uma cesta   - Tudo sob controlo.  Tudo sob con-  e uma mina. No primeiro caso, cumpriu a
           que servia de berço, jufllo a oulro bebé da                         tradição: foi o último a abandollar o bar-
           mesma idade - a filha da governanta.  Do   trolo.                   co.  No Oll/ro, foi o primeiro: a explosão o
           inferior de Minas e, como eu, pouco afeita   E desaparecell pelo corredor, atrás do   atirou direclamente da ponte de comando
          -ao mar,  a governama também não estava   marinheiro ferido.  O  professor espanhol   ao mar.  A  princípio achou qlle hav{amos
           achando a menor  graça naquela viagem.   slllgiu de sua cabine, tocou-me o braço:   lambém batido II/mla mina, dada a violin-
             Às SEIS horas o capitão, um dinamar-  -Quepasa? Quepasa?          cio da explosão. Só mais tarde pôde lIerifi-
           quês corpulento e de rosto saudável,  veio   - Tudosob COf'frolo- disse eu.   cor que, as ondas atirando o flavio de 1111/
           lIer como estávamos passando.  Eu lhe dis·   E fui me refugiar no beliche, deixei-me   lado para o outro, dois tonéis de tinta sol-
           se (profeticamelllt) qlle, se comilluasse as-  cair de nOllo lia cama,  não pode/IClo mais   taram-se de suas amarras e se chocaram,
           sim,  preferia  voltar.  Ele  adIOU  graça  na   de  enjoo.  Vi com  indiferença dois cama-  explodindo. O fogo se alastroullum porão
           minha cOlldição de moriblmdo de primei-  reiros porto-riquenhos entrarem  na cabi-  da  proa,  queimando vinte automóveis (o
           ra lIiagem:              .        lIe,  dizendo que a ordem era vestir os sal·   meu eSlava nUl1l porão da popa), celllenas
             - ESla zona é assim mesmo. A medida   lia-vidas.  Cheguei a pensar que me ensina·   de  máquinas  de  escrever  e  toneladas  de
           que nos aproximamos tio  Caribe,  o mar   vam  como usá-los;  cada  qual lIestiu  11m,   spaghclli.
           vaificalldo 11m pouco mais grosso.  Depois   relirados ambos do nosso armário.  e tie-  Ficamos sabendo disto depois do peri-
           melhora.                          ram no pé.  Mais tarde eu soube que eram   go.  Naq/lele momemo em que aguardáva-
              E me aconsefllOll a ir até o salão de re-  justamente  encarregados  de  lIossa  segu-  mos i"srruçôes para abandonar o nallio, a
           feiçôes  comer alguma coisa.  A  ideia  me   rança - foram  punidos pelo qlle haviam   COllllersa era outra:
           deu  engulhos,  mas ele  me convenceI/  de   feito.                    - Transbordo?  Passar de /1m  navio a
           q/le era o melhor a fazer - e USO/l  um ar-  - Há um incêndio a bordo. Vamos ter   outro? Com o mordesse jeito?
           gumento lambém /1m pouco grosso: eu te-  de abandonar o navio.         A  verdade é que já fomos regressando
           ria pelo menos o que vomitar.        Helena  chegava  com  a  novidade:   a NOlla  Iorque.  Nem demos conta do mo-
              foi preciso que /1m marinlleiro me aju-  abandonar o  navio.  Fechei os olhos.  No   memo em queo cargueiro fez a volto.
           dasse a Q/raw!ssar o corredor.  Mal me vi à   estado em que me achava, a ideia de aban-  A  PARTIR deel/tão, as coisas seacal-
           mesa, um balanço maior fez com que a ca-  dOI/ar o navio era uma sentença de morte.   moram. Aos poucos as ondas foram fican-
           dára deslizasse de costas ao longo de lOdo   Eu  preferia afundar com ele.  me  deixas-  do menores e o balanço suportállel. O" eu
           o salão.  e fui me agarrando à toalha das   sem ali mesmo.  Não podia acreditar qlle   já eSlal'a me acostumando, ou foi efeito do
           outras mesas como num filme de Car/itos,   houllesse escaler capaz de enfrentar ondas   SUSto -o certoé que meu enjoo acabou.
           atê bater na parede.              daquele tamanho.                     Às nove horas,  uma notícia tranquili-
              Regressei  ao  beliche:  preferia morrer   Elo dizia que a ordem do capitão era   zadora: anles de meia-noite estariamos em
           deitado.                          lellannos apenas uma valise com objectos   terra firme.  Com licença do comandante,
              O lIavio alirado de um lado para o ou·   de primeira necessidade.  Quais seriam os   subi ao tombadilho. O perigo tinha passa-
           Iro,  ondas se espatifando comra o casco.   objectos de primeira necessidade? O cani·   do,  mas  não  despi  o  salva-vidas -  por
           Isto é que é mar um pouco mais grosso?   vete?  Ou o aparelho  de  barba?  Ou  uma   mim estaria com ele até hoje.
           T'ldo chacoalhamlo frenelicameme,  lá na   caixa de fósforos? E as crianças, como nos   Não contava com aquela visão: estálla·
           cozinha um estardalhaço de louça que se   arranjar com elas? Os dois bebés na ces/a,   mos cercados de navios.  Tinham acorrido
           espatifava.  No  olhar dos  marinheiros,   será  qlle ela {lldl/ava,  como  uma casqui-  aos I/OSSO sil/ais de socorro, algul/s do por-
           apoiando-se às paredes para a~'ançar pelos   nha de noz?            to de Nova Iorque, Olllros desviaI/do-se de
           corredores,  via·se  que estávamos enfrefl-  Que ideia, aquela minha, vollar paro o   suas rOias. Ao lado singrava /1m barco ~'er­
           talldo uma respeitável tempestade.  Lá fora   Brasil de "avio, ainda mais 11m cargueiro.   mell/O  lodo itlllllinado,  especial para ell-
           chovia  pesadamell/e,  relámpagos  corla-  Depois de dois allos e meio em Nova Ior-  fremar incêndios 110 mar.  Do porão incen-
           vamalloite.                       que eu trazia, além de mais lima filha,  uma   diado saíam aillda  rolos de fumaça,  mas
              Às SETE horas,  oUlliu-se  de  repeli/e   porção de malas,  lIárias  caixas de livros,   não  1Ia/'ia mais chamas.  Os morinlleiros
           uma explosl1o.  O nallio corcoveou como   uma geladeira e um automóvel. Achei me-  comilluallam  a  manejar  mO/!J:ueiras

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