Page 347 - Revista da Armada
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RETROSPECTIVA (XII)



          Um  castiço








               o  longo da  minha  vida de  Marinha lidei  com muitos
               homens.  de todos os escalões hierárquicos.  cada  um
          Acom a sua  maneira  de ser.  as suas  virtudes.  os seus
         defeitos ...  Da  maior  parte  deles.  quase  posso  dizer que  se
         apagaram  da  minha  memória.  mas  de  alguns.  por  isto  ou
         aquilo.  nunca  me esquecerei.
            É o caso de um oficial que hoje venho evocar e era inslru-
         tor de infamaria da Escola Naval no meu tempo de aspirante.
         Chamava-se  Álvaro  Gil  Fortéc  Rebelo  (I),  mas  n6s,  na
          irreverência própria da idade. tratavamo-Io pelo Chico.  E foi
         com  esta  alcunha  que  passou  à posteridade.
            O  facto  levou-me  a  cometer  um  deslize.  numa  outra
         evocação  que dele  fiz  nos  .. Anais  do Clube Militar  Naval_
         (n.- 416  de  Abril/Junho  de  1970),  chamando-Ibe  Francis-
         CO ... ,  nome que,  para  mim,  logicamente dá origem a lodos
         os Chicos  de  Portugal.
             Eu  sei perfeitamenle  que  há  alcunhas  que  toda  a  gente
         compreende, como sejam as que referem uma característica
          ffsica - o zarolho, o perneta. o gordo, etc. -, mas há outras,
         tão  estranhas.  que  só  quem  as  pôs  sabe  a  razão.  Dou  um   o ~t Fonh Rdltlo nlfIIIIrIdD -fiKfo dr tUplrfWtS.  tm 19J().
                                                             Muni/lO Esrok!  NQ~vJ.  ",. U3boa  (foto  do Qrquiro dD  .R,4 . }.
         exemplo:
             No  meu  tempo da  Escola  NavaJ  (2)  foi  inaugurada  uma   ~sição de senlido.  muito incómoda como sabem. enquanlo
                                                              la  desfiando o  rosário:
         estátua  de Gualdim  Pais  na  cidade  de  Tomar.  Quando  vi  a
          fOlografia  do monumenlO  numa  revista,  achei  que o  mestre   - O senhor aspiranle não se lembra que  é um militar ...
         da Ordem dos Templários em Ponugal e fundador do castelo   julga  que  ainda  é  estudante  em  Coimbra...  não  mede  a
         de Tomar era parecido com  um  aspirante do curso a seguir   responsabilidade dos seus actos  ...  vou embrulhá-lo em mâll
         ao meu que. amigavelmente. comecei a tratar por Gualdim.   folha de papel selado ...  (1)  vai  sair-lhe cara a brincadeira ...
         A  coisa  pegou  e.  ainda  hoje  há  quem  chame  assim  ao   Depois. ia abrandando o tom de voz. mandava que tomás-
         ex-aspirante, agora cOnlra-almirante reformado.  sem fazer a   semos a posição de à vontade. acabando o serml10 de uma das
                                                             duas  maneiras:
         mínima  ideia  porquê!
            Deve ser O caso deste Álvaro que inexplicavelmente deu   - Desapareça da minha frente ... e tomejufzo ... ou. sente-
         em Chico.                                           -se aí nessa cadeira. que eu quero dizer-lhe umas coisas mais ...
                                                                No primeiro caso.  nós sumfamo-nos em acelerado e sem
                                 *                           olhar para  trás.  não  fosse  ele  arrepender-se .. .
            O comandante Fortie Rebdo. como era conhecido em toda   No segundo, depois de tecer  vária~ considerações sobre
         a Marinha. era um falso ferrabrás. Gritava, ameaçava, metia   a vida militar e sobre O que ela exigiria de nós. sobretudo nos
         medo.  mas  perdoava-nos  quase  tudo.  E  só  não  digo  IJJdo,   navios.  quase sem dar por isso.  ia  dando à conversa  um  ar
         porque às vezes era impossfvel. tão grave ou tão nagrante era   amistoso e  paternal  que  nos  tranquilizava o  espírito.
         a  falta  cometida.                                    Certa tarde, logo a seguir ao jantar, veio a ordenança dizer-
            Não encontrei  ningu~m ,  oficiaJ. sargento ou  praça.  mais   -~e que o senhor oficial de serviço queria  falar comigo.  Lá
         castiço do que ele nem a  quem  assentasse melhor o  epíteto   fUI . de baraço ao pesCOfO. como Egas  Moniz.  pensando na
         de marujo.  Ele era-o.  dos p« à  cabeça!  Navios de  guerra.   desculpa que havia de dar por ter passado uma rasteira a um
         paradas militares.  fanfarras e Banda da Armada  ... Tudo que   camarada.  quando  seguramos  para  a  aula.  em  formatura.
         cheirasse a  maresia,  fazia-lhe  ferver o  sangue.  O  botão de   Confessei  a  falta.  lealmente.  porque ...  o  oficial panici-
         âncora  e o  alcaxa eram  os seus  ídolos.          pante tinha visto com os seus próprios olhos. de nada valendo
                                                             mentir.
            Quando estava de oficial de serviço ao  inlemato. chama-
         va  um  ou  outro de  nós  ao  gabinete  para  lhe  pregar  uma   Ouvi  a costumada  reprimenda.  algumas  histórias  passa-
         descasca.  por qualquer infracção aos regulamentos ou nonnas   das a bordo de navios em que embarcou. outras em terra. nas
         em vigor. Começava - e falo por experiência própria várias   colónias e no estrangeiro. etc .• notando. com agrado. que ele
         vezes  repetida - por nos obrigar a  permanecer  na  correcta   estava muito bem disposto.  Tão bem que. já ambos sentados.
                                                             mandou vir dois cafés e dois bagaços. para ele e ... para mim!
            (') Nusctu tfrI Usboo fIQ  QfIQ Ik 1881 t  IMrrtu tm Qut1u.:.  tm 1961  mm
         o posto dt ctJPifIJHt{ragO/Q.                •        (')  Po,.,lripar por tlCri/O li ocorrincill  ao COI1IlIrukmft  do  unidadr (no
            e) 19J/·J4.                                      MIO.  do  Escolll Na''fl/j.

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