Page 229 - Revista da Armada
P. 229
O Terço da Armada
O Terço da Armada
da Coroa de Portugal
da Coroa de Portugal
9 de Maio de 1524, uma esquadra holandesa atacava servado na Biblioteca Pública de Évora. O seu autor foi cónego e
S. Salvador da Baía, lançando o pânico pelos portugueses chantre da Sé de Évora (1608-1609), grande erudito e homem inte-
Aque fugiram ou foram aprisionados. A cidade constituía ressado por tudo o que aconteceu no seu tempo, deixando-nos
uma pérola portuguesa no Brasil e a notícia do acontecimento, obras várias, publicadas e manuscritas. Uma dessas obras é o
chegada a Lisboa em 25 de Julho, imediatamente foi passada para códice de Évora, onde num capítulo intitulado “cousas sucedidas
Madrid, onde Filipe IV e o seu Ministro Conde Duque de Olivares em Portugal, e nas mais Provincias do Occidente de Março de 1621
tomaram conhecimento do sucedido, antes atê Fevereiro de 1622”, temos um relato de
do final do mês. A preparação do socorro foi acontecimentos relativos a Março Abril de
muito rápida e de Lisboa, saíram navios que 1621 que fala da subida ao trono de Filipe IV
levavam embarcados os soldados do Terço de Espanha, dizendo o seguinte: “… Tornou
da Armada e mais um terço de infantes, a dar officio de General do mar a Dom
chamado de Terço de Socorro. A 28 de Abril Antonio de Ataíde, e ordenou que para sua
de 1625 quando portugueses e espanhóis armada le alevantasse hum terco de
escalavam um dos baluartes da cidade, os Portugueses pagos de inverno e verão, e por
holandeses pediram a capitulação. Tinha mestre de Campo delles a Dom Francisco de
sido este o baptismo de fogo e a primeira Almeida”. Não restam dúvidas que o texto
grande acção militar desenvolvida pelo do chantre de Évora aponta para a criação
Terço da Armada da Coroa de Portugal: os do Terço em 1621 e o seu testemunho não
soldados que habitualmente guarneciam os deixa de ser abalizado, tanto mais que
navios e que funcionavam como Força de esteve muito mais próximo dos aconteci-
Desembarque em acções como a retomada mentos do que Francisco Manuel de Melo.
de S. Salvador da Baía. Eram os soldados do Esta situação levantou-nos, logo à partida,
mar, os marinheiros do fuzil, os combatentes uma dúvida que não podemos deixar de
de infantaria que constituíram a base de enquadrar nos acontecimentos históricos
todas as batalhas travadas no Índico, na que abalaram Portugal e Espanha, entre
costa africana e agora na América do sul. 1618 e 1621. A nomeação de D. António de
Aos actuais fuzileiros cabe-lhes a honra e a Ataíde para General do Mar em 1618 era um
responsabilidade inerente à herança que lhes Arcabuzeiro do Terço da Armada. acto normal levado a cabo por Filipe III de
vem directamente destes combatentes das Espanha (II de Portugal) uma vez que o
naus do século XVI e XVII. A maioria das guerras travadas além cargo teria de ser preenchido por alguém. Mas a criação de um
mar, foram-no com tropas embarcadas que participavam nas bata- terço de portugueses já era uma iniciativa muito mais ousada, quer
lhas navais, como os artilheiros ou os restantes marinheiros, em termos políticos quer em termos administrativos. Não é linear
aprontando-se para o desembarque quando assim era necessário. que se possam ver levantamentos patrióticos em pequenos inci-
Mas os fuzileiros podem ainda reclamar como seu um outro legado dentes ou rebeliões que ocorriam em diversos lugares do país, mas
importante: o facto de que o Terço da Armada da Coroa de Portugal é natural que a administração espanhola tivesse algumas dúvidas
foi a primeira unidade organizada com carácter permanente em quando à criação de um terço de infantaria que funcionasse de
Portugal. Este facto era, aliás, conhecido de todos nós e já, por várias forma organizada e permanente. Aliás, existem documentos con-
vezes, tinha sido tratado nas páginas da nossa revista. Contudo, este cretos que provam da falta de vontade espanhola em dar força mili-
acontecimento indesmentível está associado a um pequeno erro tar aos portugueses, nesta altura. De qualquer forma, embora o
histórico que importa corrigir. Trata-se de um engano no que se re- Terço da Armada pudesse ser de utilidade reconhecida – na medi-
fere à data da sua criação que sempre se supôs ter ocorrido em 1618, da em que ao largo da costa de Portugal ocorriam ataques de
quando na realidade se deu em 1621, em circunstâncias muito piratas e corsários sobre os navios que vinham do Oriente ou do
próprias que justificam plenamente o acto administrativo levado a Brasil – parecia-nos mais lógico que a sua criação estivesse ligada à
cabo por Filipe IV de Espanha (III de Portugal). subida ao trono de Filipe IV de Espanha, em Abril de 1621, sobretu-
O erro provém de um texto de Dom Francisco Manuel de Melo, do porque nessa altura se reatou a guerra com a Holanda e a defesa
publicado em 1660, onde se afirma o seguinte: “Dom Antonio de da costa portuguesa teve de merecer uma maior atenção. Deve
Atayde, sendo provido de General perpetuo, da Armada dizer-se até que os primeiros tempos do reinado de Filipe IV foram
Portuguesa (como temos dito) porque logo que se lhe conferiu o de intensa preparação para a guerra, considerando a coroa que o
cargo de ella, alcançou ordem delRey, para que em Portugal se le- anterior reinado tinha sido marcado por uma atitude política de
vantasse, e fosse fixo na Armada hum Terço de Infantaria natural falta de firmeza em relação aos inimigos da Espanha, permitindo o
[um terço de portugueses]”. De facto, em 1618, Dom António de seu fortalecimento e colocando em perigo o Império.
Ataíde, conde da Castanheira e de Castro D’Aire foi nomeado Isto eram dados que favoreciam o testemunho de Manuel
General do Mar em 1618, mas o Terço não foi levantado nessa Severim de Faria e que nos permitiam acreditar que Francisco
altura, como o provam muitos outros documentos que tivemos Manuel de Melo estaria errado, mas isso era apenas uma convicção
ocasião de observar recentemente. num confronto de dois documentos contraditórios sem que fosse
Um desses documentos é um manuscrito de Manuel Severim de possível ajuizar em definitivo qual deles teria razão. Na verdade
Faria, com o título Annaes de Portugal, que se encontra bem con- uma pesquisa no Archivo General de Simancas, já nos tinha ajuda-
10 JULHO 99 • REVISTA DA ARMADA