Page 235 - Revista da Armada
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A MARINHA JOANINA (9)
A passagem
A passagem
do Cabo da Boa Esperança
do Cabo da Boa Esperança
arece concensual que Bartolomeu Dias partiu de Lisboa a Cão (Cape Cross), mas antes de lá chegarem deixaram a “naveta”
finais de Agosto de 1487, comandando uma esquadra de de reabastecimento, que ficou à espera do regresso dos outros. Esta
Ptrês navios, dos quais, dois eram caravelas e o terceiro, uma medida foi planeada desde Lisboa havendo o cuidado de que esse
“naveta” com mantimentos, destinada a ficar em lugar seguro, navio tivesse como piloto (João de Santiago) um homem que já
algures na costa africana. Provavelmente foi direito ao rio Zaire conhecia aquelas paragens, uma vez que fora mestre na viagem
(facto que carece de confirmação absoluta) levantando-se a anterior. Aliás, uma coisa tão delicada como é a gestão dos
hipótese de que aí tenha levado uns negros que tinham vindo na reabastecimentos (especialmente da água doce), não nos parece
última viagem de Diogo Cão e que teri- que fosse deixada ao acaso. Até esta via-
am de ser recolocados na sua terra no PORTUGAL gem, não temos notícia que se tenha to-
prazo de 14 luas, sob pena de que os Lisboa mado uma medida semelhante e a cir-
portugueses que aí tinham ficado como cunstância em si não pode deixar de ser
reféns seriam mortos. Deve dizer-se que Madeira significativa de um receio ou apreensão
isto é apenas uma conjectura possível, Canárias acerca do que aguardava os mari-
que resulta do acerto de datas entre as nheiros para além daquelas paragens.
duas viagens que pode corresponder às Como dissemos na revista anterior o
tais 14 luas. De resto pouco se sabe do ÁFRICA local escolhido foi a baía dos Tigres e, se
que aconteceu com esses negros do VERDE observarmos bem, depois de passar a
CABO
Congo ou esses portugueses que aí ti- foz do Cunene, que marca a fronteira
nham ficado reféns. Mas, admitindo sul de Angola, fica o imenso deserto da
que terá ido ao Zaire, seguiu, com Namíbia cuja aridez é visível do mar.
certeza, a rota que já era conhecida dos Bartolomeu Dias devia observar minu-
portugueses, passando ao largo da ciosamente a costa e registar todos os
Madeira, das Canárias e do arquipélago seus acidentes (que, aliás, aparecem nas
de Cabo Verde (que, por vezes, era cartas que se seguem a esta expedição),
aportado para fazer aguada e outras OCEANO ATLÂNTICO mas tinha de tomar algumas precauções
vezes era rondado por bombordo), Rio Zaire num local absolutamente desconhecido
aproveitando depois a corrente da dos portugueses e de aspecto tão
Guiné para navegar até perto do Cabo inóspito. Por esta atitude podemos con-
de Santa Catarina e dirigindo-se para o Baía dos Tigres jecturar das razões da decisão de Diogo
sul, até à foz do Zaire. Depois seguiu Cão em não continuar a viagem para
para sul parando em diversos pontos Cabo do Padrão sul: a costa não alvitrava quaisquer pos-
da costa, onde se sabe que foram dei- sibilidades de reabastecer os navios,
xadas três mulheres negras da região Angra das Voltas para além de que os ventos não seriam
(uma quarta morreu antes de desembar- nada favoráveis. Só isto justifica a medi-
car) - “vestidos e bem tratádos com © PÁGINA ÍMPAR Cabo da Boa Esperança da especial de levar a “naveta” de
móstra de práta, ouro, e especiarias: era Angra de São Brás reabastecimento até à baía dos Tigres,
porque jndo tér a pouoádo podessem de forma a fornecer um suplemento de
notificar de huns em outros a grandeza mantimentos e água aos navios de
de seu reyno [reino de Portugal]”, tal como nos diz João de Barros Bartolomeu Dias, permitindo-lhe ir mais longe na exploração
– e dois homens que tinham sido raptados por Diogo Cão em daquela costa deserta, tentando alcançar a desejada passagem para
Angra do Salto. Este desembarque dos cativos correspondia a uma o Índico. As duas caravelas navegaram até à Serra dos Reis que
política determinada por D. João II destinada a criar um certo alcançaram a 6 de Janeiro de 1488, mas não conseguiram avançar
impacte nas populações que ainda não tinham chegado à fala com mais, por causa de condições de mau tempo e do vento ponteiro
os portugueses. Dizem-nos os cronistas que o rei de Portugal pre- que se faz sentir quase todo o ano. Tiveram de voltar atrás, abri-
tendia que essa gente, depois de ter sido bem tratada e de ter visto gando-se numa baía, onde pairaram durante cinco dias (Angra das
um certo fausto e riqueza na corte portuguesa, fosse anunciá-lo Voltas ou Luderitz bay), depois o capitão decidiu arriar ligeira-
pelo sertão africano, podendo a sua voz chegar ao lendário Preste mente os bastardos (reduzindo a superficie do pano e baixando o
João (imperador cristão da Abissínia), despertando a sua atenção centro vélico) e fez-se ao mar numa volta larga, primeiro para SW,
para o facto dos portugueses andarem em busca daquelas para- depois para S e, finalmente para E. Não tendo encontrado terra, ao
gens. É, naturalmente, uma questão discutível, parecendo-me que cabo de uns dias, resolve rumar a norte aportando a Angra de S.
pode estar marcada pela propaganda própria de quem pretende Brás (Mosel Bay) em 3 de Fevereiro de 1488. Estava já no Oceano
fazer um panegírico da gesta dos descobrimentos portugueses, Índico.
realçando valores morais do século XV e XVI. J. Semedo de Matos
Os navios seguiram até ao último padrão deixado por Diogo CTEN FZ
16 JULHO 99 • REVISTA DA ARMADA