Page 265 - Revista da Armada
P. 265

aos navios e aos comerciantes, chegando  homem dum braço só (2). A situação chegou  e mais não foi possível fazer do que trans-
         ao ponto de, sem qualquer cerimónia, ati-  a exigir uma quase implementação da lei  mitir um vigoroso protesto ao governador
         rar pessoalmente pelas escadas um dos  marcial, mas Amaral conseguiu afirmar a  de Hong-Kong.
         que difamara a sua administração e tivera,  autoridade portuguesa e granjear o  O governo britânico acabou por apre-
         apesar de tudo, o desplante de lhe apare-  respeito não apenas da população local  sentar um formal pedido de desculpas a
         cer no Palácio do Governo. Esta firmeza  mas também das autoridades chinesas.  Portugal, tendo censurado Keppel (que
         de agir era, contudo, sempre acompanha-  Nem mesmo os ingleses ousavam desa-  tinha comandado a operação), mas este
         da de uma continuada acção diplomática  fiá-lo abertamente (“preocupados” com  incidente encorajou os chineses a planear
         junto do vice-rei de Cantão, explicando  a segurança do território, os nossos ve-  a vingança contra Amaral, pois descobri-
         que mais não se fazia do que fazer  lhos aliados já tinham tentado por duas  am que Macau não se encontrava sob a
         cumprir ordens da Coroa Portuguesa e  vezes – 1807 e 1810 – impor a sua pre-  protecção do aliado inglês. Em Cantão
         repor a legalidade num território que era,  sença militar, não tendo, porém, sido  chegaram a ser afixados cartazes, com a
         de jure, pertença de Portugal.     bem sucedidos), como o atesta o infame  conivência, oferecendo um prémio pela
           Mas para Macau ser um verdadeiro  caso Summers:                     cabeça do Governador.
         porto franco, havia ainda que acabar com  Em 7 de Junho de 1849, durante a pro-  Amaral sabia de tudo isto (a sua recti-
         o símbolo oficial da hegemonia chinesa: a  cissão de Corpus Christi, um cidadão inglês  dão, firmeza e frontalidade tinham-lhe
         alfândega Ho-Pu, que foi finalmente extin-  de Hong-Kong, James Summers, num  criado várias inimizades entre os interes-
         ta em 5 de Março de 1849 (a alfândega  gesto de arrogância, desrespeito e  ses instalados) mas, apesar de avisado do
         portuguesa já fora, entretanto, abolida).  fanatismo protestante, recusou-se a tirar o  perigo por um dos seus criados chineses,
         Conforme referido anteriormente, esta  chapéu, obstinando-se na sua recusa  era incapaz de mostrar qualquer receio.
         revelou-se uma medida nefasta, pois con-  mesmo depois de educadamente adver-  Assim sendo, na tarde de 22 de Agosto de
         duziu ao boicote chinês, à semelhança do  tido, sendo, por esse motivo, encarcerado.  1849, saiu a cavalo, acompanhado do seu
         que sucedia em Hong-Kong. Para     Na manhã seguinte, Amaral foi interpela-  ajudante de campo. Tendo ultrapassado a
         impedir o êxodo que se adivinhava, o  do por três oficiais superiores da Marinha  Porta do Cerco para dar esmola a uma
         Governador viu-se mesmo forçado a  Inglesa que ali se encontravam para uma  velha doente, foi abordado por um rapaz
         proibir a saída dos proprietários chineses  regata organizada pela Administração  que o golpeou no rosto com uma cana de
         sem uma autorização escrita, autorização  macaense. Apesar de pressionado para li-  bambu. Quando ia reagir saltaram sobre
         essa cuja ausência implicaria o confisco  bertar Summers imediatamente, não  ele sete chinas armados com espadas cur-
         das propriedades como tendo sido aban-  cedeu, embora, cortesmente, se tivesse  tas. Enquanto o ajudante de campo,
         donadas. A verdade é que sem a colabo-
         ração Chinesa, Macau ficava reduzido de
         posto comercial a posto militar avançado,
         ao nível das arruinadas possessões por-
         tuguesas na Índia e em África.
           Se implementar todas estas medidas já
         de si era difícil, pela feroz oposição dos
         visados, mais difícil se tornou quando o
         próprio Senado criticou a “política anti-
         chinesa” de Amaral. Em resposta, foi dis-
         solvido, tendo os ex-senadores sido acu-
         sados da falta de lealdade e de patrio-
         tismo (é provável que grande parte deles
         compactuasse com a corrupção, dela co-
         lhendo benefícios). A acção daquele órgão
         foi, em consequência, severamente limita-
         da a partir daí.
           Mas não foi apenas da parte do Senado
         que surgiram entraves. O próprio gover-
         no central, absorvido em novos assomos
         de guerra civil, deixou a colónia abando-
         nada à sua sorte, descurando o apoio de-
         vido à implementação das suas próprias  Porta do Cerco, local onde tombou Ferreira do Amaral.
         políticas. Extinta, com a alfândega por-
         tuguesa, a principal fonte de rendimentos  oferecido para interceder pelo prisioneiro  ligeiramente ferido, conseguia fugir,
         do território e entregue aos seus precários  junto do juiz. Um dos oficiais, Henry  Amaral foi esfaqueado e desmontado.
         recursos (que incluíam as patrióticas con-  Keppel, declarou arrogantemente que não  Ter-se-à  batido como um leão, seguran-
         tribuições dos mercadores macaenses), o  queria favores e reiterou a exigência da  do as rédeas com os dentes e tentando
         Governador foi obrigado a lançar impos-  libertação incondicional. Mas os ingleses  empunhar a pistola com o seu único
         tos sobre a população, impostos que, alia-  não se atreveram a usar a força contra  braço (a areia no local foi encontrada sel-
         dos ao recrutamento forçado para garan-  Amaral. Em vez disso, aproveitaram a sua  vaticamente remexida e o seu corpo apre-
         tir a segurança e a ordem públicas, gera-  ausência, durante a regata, encontrando-se  sentava inúmeros ferimentos), mas
         ram o descontentamento geral. Em 23 de  a bordo do navio-almirante, HMS  acabou por sucumbir aos golpes, tendo a
         Novembro de 1847 Amaral, numa carta  Plymouth, para, pela calada, desembarcar  sua cabeça sido cortada, juntamente com
         para Lisboa, dera já conta da situação  uma pequena força e libertar o súbdito de  a mão que lhe restava. Os assassinos
         instável que se criava: Eu respondo com a  Sua Majestade, tendo morto um guarda  escaparam, levando consigo a cabeça (o
         minha cabeça que hei-de cumprir e fazer cum-  desarmado e ferido outros três. Informado  que comprova a hipótese de assassínio
         prir tudo o que humanamente seja possível e  da traiçoeira afronta, o Governador rea-  premeditado) e deixando sobre a areia o
         me seja ordenado pelo governo, mas sem di-  giu, chamando as tropas às armas, mas os  cadáver horrivelmente mutilado do
         nheiro e sem crédito é exigir mais do que pode  navios ingleses já estavam fora do alcance  Governador.

         10 AGOSTO 99 • REVISTA DA ARMADA
   260   261   262   263   264   265   266   267   268   269   270