Page 266 - Revista da Armada
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para junto da Porta do Cerco, de modo a
constituir um exemplo. O Conselho
protestou novamente por esta demons-
tração de falsa justiça, mantendo a sua con-
vicção no envolvimento das altas entidades
cantonesas.
Quanto à cabeça e à mão esquerda de
Amaral, acabariam por ser entregues em 16
de Janeiro de 1850, após muitos protestos,
insistências e adiamentos da parte dos chi-
neses, que ainda tentaram impor condições.
Só então o Governador pôde ter um funeral
de Estado, digno da sua pessoa, tendo os
seus restos mortais sido transladados para
Lisboa.
Restava ao governo português vingar as
afrontas sofridas. Para o efeito, foram envia-
das para Macau a fragata D. Maria II e as
corvetas Íris e D. João I, assim como um
destacamento de tropas. Também de Goa
veio um destacamento. Pretendia-se, com
Estátua do Segundo-Tenente macaense Nicolau de Mesquita.
estes efectivos, a realização de um ataque
punitivo a Cantão. Porém, os navios envia-
A REACÇÃO custa de apenas um ferido. Quando regres- dos acabaram por chegar em condições
saram levavam consigo a cabeça e a mão de deploráveis, a necessitar reparações e as
O assassínio de Ferreira do Amaral um mandarim que opusera resistência, vin- tropas prometidos pelo governo central
lançou o horror e o medo na sociedade gando, desse modo, a morte de Amaral. nunca vieram.
macaense. Tornou-se iminente a debanda- Um gesto bárbaro? Talvez, mas bárbaros Mas o golpe de misericórdia na expe-
da da população, ante a ameaça de uma eram também os tempos que se viviam e a dição foi dado em 29 de Outubro de 1850,
invasão chinesa do território (solidárias, as verdade é que, depois disso, nunca mais os com a terrível tragédia da D. Maria II, que
representações estrangeiras, nomeada- mandarins voltaram a tentar uma acção de explodiu ao largo da ilha da Taipa, após a
mente a inglesa, disponibilizaram as suas armas contra Macau. Com a transferência execução de salvas (comemorava-se o
forças militares e fizeram avançar os seus do Tso-Tang para Chinsan, o seu poder aniversário do Rei). A fragata ficou desfeita
navios de guerra operando na zona para ficou definitivamente abalado. pela explosão de trezentos barris de pólvo-
auxiliar a defesa). De facto, tencionando Pelo seu gesto heróico, Mesquita foi pro- ra, tendo morrido cerca de 190 homens da
aproveitar a confusão geral na sequência movido por distinção a Primeiro-Tenente, guarnição. A corveta americana Marion,
do homicídio, os chineses tinham concen- tendo-lhes os comerciantes portugueses da fundeada nas proximidades, escapou por
trado cerca de 2000 homens nas proximi- zona oferecido uma espada com bainha e pouco, tendo recebido sobre o convés uma
dades de Macau. Destes, cerca de 500 punho de prata, com uma legenda alusiva chuva de sangue e fragmentos de carne.
estavam entrincheirados no forte Pak-Shan- ao extraordinário feito. Acolheu, também, vários feridos, muitos
Lan (em português Passaleão), postando-se No território permaneceram, entretanto deles mutilados e desfigurados, con-
os restantes nas colinas em redor, com a as forças estrangeiras. Foram pedidos torcendo-se em mortal agonia. De acordo
artilharia. Quando, na manhã de 25 de reforços a Goa e a Lisboa e foi feito um com a versão dos sobreviventes, o desastre
Agosto, um pequeno destacamento de 120 apelo às armas à comunidade portuguesa ter-se-á, provavelmente, ficado a dever a
homens e três peças da guarnição da de Hong-Kong, que respondeu entusiasti- um acto de vingança do guarda do paiol de
cidade ocupou posições junto à Porta do camente. Estava aliviada a pressão! munições, punido por embriaguez e ne-
Cerco, os chineses abriram fogo do No mesmo dia em que o Passaleão era gligência (muitos tinham-no ouvido
Passaleão (dispunham de 20 peças), tornan- tomado, o Conselho do Governo apresen- ameaçar deitar fogo ao paiol). Não teria,
do insustentável a situação dos defensores. tou um vigoroso protesto pelo odioso porém, sido difícil, não fora esta versão,
Se retirassem, porém, estaria aberto o cami- assassínio junto de vice-rei de Cantão, que imaginar um acto de sabotagem da parte
nho à invasão! se limitou a dar respostas tortuosas e a dos chineses.
Foi então que um jovem Segundo- fazer insinuações ofensivas à memória de A expedição punitiva nunca se realizou,
Tenente macaense, Vicente Nicolau de Amaral, sugerindo que o Governador fora mas o destino acabaria por tomar a seu
Mesquita, se apresentou ao Conselho do vítima da sua própria maldade, tendo, cargo a punição do maldoso vice-rei de
Governo (que substituía o Governador), provavelmente, despertado as iras dos Cantão: a braços com uma rebelião (revolta
propondo-se tomar o forte com a ajuda de próprios portugueses residentes no ter- dos Taiping) sofreu desaire atrás de desaire,
16 homens da sua confiança. Tendo sido ritório. O Conselho respondeu à letra, sendo sucessivamente despromovido por
autorizado, avançou até à Porta do Cerco, dando conta das investigações que tor- incompetência e, por fim, decapitado.
onde se lhe juntaram mais 20. Levando à navam claro o envolvimento das autori-
sua frente um morteiro, abriram fogo de dades cantonesas e insistindo na DEPOIS DA TEMPESTADE
uma posição favorável. O único tiro dis- devolução da cabeça e da mão de Amaral,
parado (o morteiro ficou inutilizado com o assim como na punição exemplar dos Na sequência de todos estes aconteci-
recuo) acertou em cheio, no local onde, no assassinos. mentos, o governo chinês dispôs-se, enfim,
forte, se encontravam mais homens, cau- A 16 de Setembro o vice-rei comunicou a um acordo, tendo sido encetadas negocia-
sando o pânico. Dali se lançaram à carga ao Conselho a detenção e a execução do ções em 1862.
Mesquita e os seus 36 bravos, tendo desalo- suposto assassino (provavelmente algum A alfândega chinesa acabou por ser
jado os 500 ocupantes do forte (não se sabe infeliz aliciado, com recompensas e restabelecida em Macau, mas apenas na
quantas baixas sofreu o inimigo, pois promessas de perdão, a confessar um crime condição de ser suprimida assim que o
retirou levando consigo mortos e feridos), à que não cometera) e o envio da sua cabeça fosse em Hong-Kong (protocolo de 1886). ✎
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