Page 84 - Revista da Armada
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A MARINHA JOANINA (5)
O Tratado das Alcáçovas
O Tratado das Alcáçovas
e a primeira partilha do Atlântico
e a primeira partilha do Atlântico
enrique IV de Castela esquadra de 35 navios, com
morre em 1474, dei- destino ao golfo da Guiné e, a
Hxando um problema partir daí, essa prática tor-
de sucessão ao trono por nou-se sistemática. A reacção
resolver. O rei tinha casado portuguesa não se fez espe-
com uma irmã de Afonso V rar, sabendo-se que as carave-
(de Portugal) e havia uma las passaram a dispor de arti-
filha, de nome D. Joana, mas lharia, encetando uma nova
uma parte da nobreza caste- era no combate naval. Uma
lhana contestava a pater- grande parte destas tentati-
nidade do soberano, alegando vas espanholas acabariam
relações ilícitas da rainha com por se malograr, graças à
o fidalgo D. Beltrão de la actuação decisiva que se
Cueva. Na realidade, o que supõe ter sido levada a cabo
estava em causa era mesmo a por influência de D. João (o
tentativa de intromissão por- futuro rei D. João II), mas o
tuguesa na coroa de Castela. O Castelo da Mina. andar dos tempos e a análise
D. Henrique passou muito tempo sem filhos e apontou a sua das circunstâncias aconselhavam a que se conseguisse um
meia irmã, D. Isabel, como herdeira do trono. Contudo, no acordo negociado que garantisse a paz.
final da sua vida, desagradado com o facto de ela ter casado Na verdade, o tratado, cujo texto foi concluído e assinado na
com o rei de Aragão, o soberano castelhano voltou a trás com vila das Alcáçovas, a 4 de Setembro de 1479, continha diversas
estas pretensões e fez jurar a filha como sucessora. É claro que cláusulas que regulavam questões de vária ordem, pendentes
o assunto não seria indiferente a D. Afonso V que não des- entre os dois reinos. A mais importante era a de que os por-
perdiçou a oportunidade de tentar estender a sua influência ao tugueses reconheciam Isabel como rainha de Castela, abdican-
reino vizinho. A princesa D. Joana era sua sobrinha, era muito do da candidatura de D. Joana, cujo casamento com Afonso V
jovem, e moralmente impunha-se que fosse protegida. Por acabaria por não ser reconhecido. Com esta cláusula se con-
outro lado o desagrado de Henrique IV, com o casamento de seguia a paz. Contudo, um outro aspecto tinha particular
Isabel e com a visão de uma ligação a Aragão, aproximara-o de importância para os portugueses: as terras a sul do Bojador,
Portugal. O rei português alegou ainda que o seu cunhado, incluindo ilhas e costas descobertas e por descobrir, com tratos
antes de morrer, lhe pedira para que tomasse conta do trono e de comércio e conquistas, pertenciam aos portugueses. O
fizesse valer os direitos da jovem princesa injuriada. Era, natu- mesmo se passava com os reinos de Fez (Norte de África) e
ralmente, uma questão delicada, que iria dominar a política com os arquipélagos da Madeira e dos Açores, mas as ilhas
externa portuguesa até 1479/80: Afonso V decidiu casar com a Canárias ficavam definitivamente na posse de Castela. O resto
sobrinha e invadir Castela, para tomar posse do que julgava do tratado dizia respeito à devolução de terras e bens tomados
ser os seus direitos, mas o conflito não estava ao alcance das durante a guerra, ao perdão de pessoas que tinham tomado o
capacidades nacionais e, sobretudo viria a levantar um proble- partido de qualquer dos lados e um acordo final de casamento
ma grave para a economia portuguesa: fez com que os navios de D. Afonso (filho de D. João II) com D. Isabel (filha dos reis
de Castela e Aragão aparecessem na Costa da Guiné, afrontan- de Castela e Aragão), que ficou designado por Terçarias de
do directamente o comércio que os portugueses reivindicavam Moura, porque em Moura ficariam a viver os dois príncipes
como sendo só seu. (em casa de Dona Beatriz, a mãe do duque de Bragança) até
Em 1476 o exército de Fernando de Aragão defrontava os atingirem a idade de casar.
portugueses no Toro. A batalha não teve uma decisão militar Este tratado viria a ser ratificado pelas cortes de Toledo, em
conclusiva, mas serviu para mostrar que não nos era possível 1480, passando a regular a navegação portuguesa e espanhola
continuar aquela guerra. As despesas eram enormes e os resul- no Atlântico. Os portugueses abdicavam das ilhas Canárias —
tados muito difíceis. Por outro lado, o problema do comércio que tinham sido um ponto controverso onde se tentara, por
africano ganhava uma dimensão que não agradava aos inte- várias vezes, estabelecer uma base para a exploração da costa
resses portugueses, representados pelo príncipe D. João, o africana – mas ganhavam a segurança nos mares a sul do
novo gestor dos trautos da Guiné. Até aí, todas as pretensões arquipélago, onde já tinham outros pontos de apoio e de onde
dos castelhanos tinham manifestado acerca da costa africana ti- vinham ricas mercadorias. D. Afonso V morreu em 1481 e,
nham ficado suspensas na indefinição da posse das Canárias e logo em 1482, D. João II mandaria construir a fortaleza de S.
numa certa escusa a mandarem os seus navios a África. O Jorge da Mina, situada no coração do golfo da Guiné, perto de
papado arbitrara a questão com bulas evasivas ou contempo- Cape Coast, no actual Gana. Até 1637 (quando foi tomado
rizadoras e a questão permanecia adormecida, um pouco por pelos holandeses) esse seria o principal local de comércio
falta de capacidade marítima dos castelhanos e porque a paz marítimo africano e o centro de toda a actividade portuguesa
reinava entre os dois vizinhos. Mas o estado de guerra fez com no Golfo.
que Isabel estimulasse o afrontamento directo ao comércio por-
tuguês: em 1476/77 aparecem navios desgarrados que não J. Semedo de Matos
tiveram grande sucesso, mas em 78 saiu de Sevilha uma CTEN FZ
10 MARÇO 99 • REVISTA DA ARMADA