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A MARINHA DE D. MANUEL (2)



           A partida de Vasco da Gama
            A partida de Vasco da Gama






               actividade náutica portuguesa  esta glória "efémera". Este Velho do
               nos primeiros anos do reinado de  Restelo – como ficou chamado para a
         A D. Manuel, antes da partida de   História e como ainda hoje representa o
         Vasco da Gama para a Índia, é, em mui-  espírito retrógrado e pouco empreende-  Mas um velho de aspeito venerando,
         tos dos seus aspectos, uma incógnita que  dor – descrê dos resultados daquela expe-  Que ficava nas praias, antre a gente,
         não teve um resolução satisfatória da  dição e fala em nome de toda a gente que  Postos em nós os olhos, meneando
         parte dos historiadores. É sabido que se  a ela se opôs e que desaconselhou D. Ma-  Três vezes a cabeça, descontente,
         continuou a viajar para a Mina e para a  nuel a que a fizesse.
         costa ocidental de África – para além das  Todavia a esquadra preparou-se para  A voz pesada um pouco alevantando,
         normais expedições ao Mediterrâneo,  a partida. Com os navios fundeados em  Que nós no mar ouvimos claramente,
         onde sempre se travaram confrontos com  Belém, abastecidos de tudo o que se jul-  Cum saber só de experiência feito,
         o Islão – mas faltam notícias concretas  gava necessário, bastava-lhe um pouco
         sobre eventuais viagens que poderiam  de vento norte, o que é vulgar nestes me-  Tais palavras tirou do experto peito:
         esclarecer o hiato documental que separa  ses de verão (como nos diz João de Bar-
         o feito de Bartolomeu Dias do de Vasco  ros). Foi feita uma vigília de todos os ca-  - «Ó glória de mandar! Ó vã cobiça
         da Gama. Não é fácil proferir afirmações  pitães na ermida de Nossa Senhora de  Desta vaidade a quem chamamos fama!
         exactas sobre o que se passou nesses  Belém e no sábado, dia oito, todos foram
         cerca de nove anos, embora existam  em procissão até à praia. Juntou-se muita  Ó fraudulento gosto, que se atiça
         muitas conjecturas sobre o assunto.  gente e é fácil imaginar como se mistu-  Cua a aura popular que honra se chama!
         Também eu não me vou inibir de dar  raram os curiosos, alegres e bem dispos-  Que castigo tamanho, e que justiça
         uma explicação sobre o que se terá feito  tos, com os vendedores e com o choro  Fazes no peito vão que muito te ama!
         nessa altura para melhor definir o que  dos familiares desgostosos com aquela
         seria o caminho da Índia, mas parece-me  partida. Se encontrávamos pais e mães  Que mortes, que perigos, que tormentas,
         que tudo se tornará mais fácil se primeiro  tristes e contidos, certamente, que havia  Que crueldades neles exp’rimentas
         falar da própria viagem do Gama (e a de  esposas e noivas desesperadas em choro
         Cabral), levantando alguns problemas  convulsivo, que olhavam o afastamento                Lusíadas, Canto IV
         que depois servirão de base ao raciocínio  dos escaleres como quem vê esfumar-se
         sobre esta época pouco documentada.  a sua própria vida. Imagino os marinhei-
         Assim, falaremos dentro dos próximos  ros em faina, dependurados nas vergas,
         artigos de aspectos relacionados com  caçando cabos, agarrados ao guincho
         essas duas viagens, voltando depois um  para levantar ferro, e procurando distrair
         pouco atrás para pensar nos trabalhos e  a sua própria dor, evitando olhar a mul-
         explorações que as precederam.     tidão da praia, as colinas de Lisboa, o
           Recordo que Vasco da Gama partiu do  casario e tudo o que lhe trazia à memória
         Restelo a 8 de Julho de 1447 e que essa  os últimos momentos passados em terra,
         viagem representou a esperança num  com a sua gente. São assim todas as par-
         projecto que não era acompanhado por  tidas – também as temos hoje —, mas
         toda a nobreza portuguesa, havendo  aquela deve ter sido mais dolorosa que
         muita gente que o considerava desneces-  qualquer outra porque se tratava de uma
         sário, fora das possibilidades do reino,  viagem para um desconhecido de onde,
         demasiado ambicioso e tocando as raias  pela certa, muitos não voltariam.
         da loucura. Camões fala-nos de "um   Com a maré na vazante, os ferros
         velho de aspeito venerando" que, na  foram recolhidos e peados deixando que
         praia do Restelo, vocifera com "voz pesa-  os navios lentamente deslizassem Tejo
         da": "Ó glória de mandar! Ó vã cobiça!".  abaixo em direcção à barra. Vergas
         Interpretando a ideia de ambição desme-  braceadas, as escotas devem ter sido
         dida que justificava uma aventura ta-  caçadas e o som dos panos a grivar é
         manha, o "Velho do Restelo" diz mais  substituído pelo assobio do vento nas
         adiante: "Não tens junto contigo o Is-  velas e pelo borbulhar das águas sulca-
         maelita,/ Com quem sempre terás guer-  das mansamente pelas quilhas. Já não
         ras sobejas" - quer ele dizer: não tens  era a primeira aventura marítima dos
         aqui mesmo, no Norte de África, um ini-  portugueses e aquela barra tinha visto
         migo a combater, "Se queres por vitórias  muitas partidas tão incertas como aque-
         ser louvado". E diz mais: "Buscas o incer-  la, mas era a "grande partida".
         to e incógnito perigo" – sugerindo dire-                                        O “Velho do Restelo”
         ctamente que o rei de Portugal apenas                                       Héliogravura de Alfred Bramtot.
         vive a ambição de ser chamado de se-
         nhor "Da Índia, Pérsia, Arábia e de Etió-           J. Semedo de Matos
         pia", sacrificando meios desmedidos a                         CTEN FZ
                                                                                         REVISTA DA ARMADA • ABRIL 2000  9
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