Page 95 - Revista da Armada
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Vice-Rei. O objectivo último era o Índico e o os pilotos tamto se aquejxão; e soubea per- e, sendo menos de 11 oras, a sombra do estilo
combate à presença turca que ameaçava os feitamente e afyrmo a V.A. que ate ora nom foi hia muito além da linha do meo dia; pello
interesses lusitanos nessas paragens. sabjdo nem maginado alguum sagraedo que que, mandando vir algumas agulhas pera as
D. João ocupa um lugar muito especial nesta parte alcamsei, o que faz muito caso cotejar com o estormennto, acheyas tão
nesta força naval. Vai Incumbido de fazer pera as deferenças que ouve entre V.ª e o desconcertadas, que foy cousa espantosa,
observações, experiências, testes no campo emperador, e pode aver sobre a repartiçao do porque onde huma fazia o leste, a outra
da náutica e cosmografia. Embarcado na nau mundo.” (10). mostraua o norte. Isto me teve muito sus-
“Grifo”, tenta dar o seu contributo com vista Para além desta espinhosa questão, pensso, até que entendi a causa, e foy hum
à solvência de vários problemas, com que se demonstrou D. João de Castro com grande berço[peça de artelharia] que estaua no
debatia a náutica quinhentista: a determi- acuidade que o «merediano vero» não pas- mesmo lugar, onde eu queria fazer as ope-
nação da longitude, a representação cartográ- sava pelas Canárias, ao contrário do que se rações, o ferro do qual berço chamara assy
fica, a determinação da latitude a qualquer pensava. De resto, acabou por determinar o as agulhas, e as fazia desviar desta
hora do dia, o desvio da agulha; estudando ponto exacto por onde passava a linha agóni- maneira[...]” (12).
em simultâneo o regime de ventos, as cor- ca no Atlântico Sul, o que era extremamente Através da descrição deste episódio ficamos
rentes, o magnetismo terrestre. O seu traba- importante para uma correcta identificação com uma ideia do rigor e das capacidades
lho a bordo configura, assim, um verdadeiro do ponto de aterragem na costa de África, a científicas evidenciadas por D. João de Castro,
projecto científico. sul do Equador. que não tiveram seguimento na prática de
É de salientar o pilotos e «homens do
esforço que o poder mar», e naqueles que
central faz, ao longo mais de perto convi-
destes anos, em prol do viam com as nave-
aperfeiçoamento da gações. Por outro lado,
navegação oceânica, há um desconhecimen-
particulamente das to generalizado, nos
condições em que era meios eruditos euro-
feita a “carreira da peus, da obra de Cas-
Índia. Entre as medidas tro. Por é que tal acon-
tomadas, sobressai a teceu? Que razões es-
criação de um ensino tiveram por detrás? A
náutico, aberto a pilo- questão é complexa e
tos, cartógrafos, e cons- difícil de enunciar. Po-
trutores de instrumentos demos, contudo, su-
náuticos, tutelado por gerir alguns dados para
um Cosmógrafo-mór, reflexão.
cuja primeira nomea- O controlo da circu-
ção recai em Pedro lação da informação,
Nunes. em especial por parte
Algo está a mudar do Estado e dos círculos
no meio naval portu- mercantis, é uma das
guês ao longo do se- fortes razões que levam
gundo quartel do sécu- ao predomínio da cul-
lo XVI. Aliás, a missão tura manuscrita sobre a
de D. João de Castro Tapeçaria de D. João de Castro – Kunsthistorisches Museum, Viena de Áustria. impressa (13), com im-
pode ser inserida num portantes reflexos na
programa, mais vasto, de grandes realizações Num trabalho hidrográfico minucioso reco- divulgação das ideias; por seu turno, as dificul-
e reformas, levadas a cabo pela Coroa, onde lhe, paralelamente, elementos que permitem dades de recepção e divulgação dos discur-
cabe a reforma da Universidade, a exploração melhorar as derrotas descritas pelos navios, sos, têm muito que ver com as sensibilidades,
e colonização do Brasil, a ampliação dos con- tornado-as mais seguras, quando se dirigiam gostos e interesse cultural demonstrado em
tactos com povos e culturas no Extremo- ou regressavam da Índia (11). Com efeito, re- determinado momento pelas sociedades e
-Oriente. gista conhecenças (plantas, animais marinhos, suas elites letradas. Ora, na sociedade qui-
Durante a viagem, e logo no primeiro pontos terrestres) e avalia a distância (lonjura) nhentista portuguesa o baixo número de
roteiro, concebido entre Lisboa e Goa, D. João entre o Brasil e o Cabo da Boa Esperança. quadros, da elite governativa e administrativa,
consegue juntar dados que lhe permitem refu- D. João de Castro levara consigo um «instru- é um factor de relevo para que essa camada
tar a teoria, divulgada no Livro de Marinharia mento de sombras» inventado por Pedro restrita, segundo o Professor Borges de
de João de Lisboa (1514), segundo o qual a Nunes, procurando insistentemente durante a Macedo (14), mergulhasse em problemas e
variação de declinação magnética se fazia por viagem determinar a latitude a qualquer hora preocupações que a afastava do ócio, das
meridianos geográficos. Verificava, portanto, do dia, mediante observações da altura e letras e das ciências. Daí, porventura, este
que as isogónicas não coincidiam com os azimute do Sol, assunto que aquele grande navegador e cientista que temos vindo a abor-
meridianos geográficos – assunto de muito matemático se debruça no “Tratado em dar se ter transformado num caso singular, na
interesse para o Governo de D. João III, aten- Defensam da Carta de marear”. história das navegações portuguesas, dos sé-
dendo ao conflito diplomático que era travado Um dos episódios mais marcantes deste culos XV e XVI.
com a Espanha, em torno da demarcação da primeiro roteiro, concebido entre Lisboa e É de referir, por fim, as críticas contundentes
área que cabia a cada um dos reinos com base Goa, é o descobrimento do desvio da agulha a que D. João de Castro faz aos pilotos do seu
no Tratado de Tordesilhas. Na carta que en- bordo, feito por Castro, numa operação que tempo, bem presentes na sua reflexão. As suas
viou ao Rei a 5 de Agosto de 1538, quando a nada deve aos melhores experimentalistas do observações situam-se num campo teórico
armada estava em Moçambique a fazer agua- século XVII. É de facto uma das mais soberbas que está muito para além do interesse, saber,
da, informa: “ Eu senhor, tenho trabalhado descrições, contidas nos seus trabalhos. vontade de inquirir e “descobrir” da maior
neste camjnho quando pude por entender “ Este dia quis obrar com o estormento das parte dos que andavam a bordo dos navios.
meudamente a variação das agulhas, de que sombras para verificar a variação das agulhas Isto pode explicar o meio rotineiro e “conser-
REVISTA DA ARMADA • MARÇO 2003 21