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A Escola Naval visita Córdova
             A Escola Naval visita Córdova



               o ano de 710                                                                    deixando quase todo o
               d.C., a Penín-                                                                  sul da Península fora
         Nsula vivia um                                                                        da alçada do poder
         momento de caos e de-                                                                 visigodo. O próprio
         sordem cuja causa fun-                                                                emir de Tunes, Musa
         damental estava na en-                                                                ibn Nusayr, só alguns
         démica dificuldade de                                                                  meses depois da ful-
         passagem do poder na                                                                  gurante campanha de
         monarquia visigótica,                                                                 Tarik, se apercebeu
         onde a ordem dinásti-                                                                 da dimensão do que
         ca passava sempre por                                                                 estava a acontecer, re-
         violentas disputas, an-                                                               solvendo passar tam-
         tes da aceitação de um                                                                bém para a Península
         soberano incontestá-                                                                  Ibérica, para não estar
         vel. Tinha morrido re-                                                                ausente das conquistas
         centemente o rei Vitiza                                                               que, certamente, iriam
         e a sucessão dividia-se                                                               agradar ao califa de
         entre dois candidatos                                                                 Damasco.
         poderosos que trata-
         ram de juntar os seus
         partidários para uma
         guerra que, desta vez
         viria a assumir uma
         característica diferente
         das anteriores e acaba-
         ria por destruir o pró-  Vista aérea da mesquita/catedral à beira do Guadalquivir em frente
         prio reino. Os apoian-  à ponte romana. É bem visível a grandiosidade do edifício de onde
         tes do filho de Vitiza,   emerge a transformação do séc. XVI.
         não aceitaram o par-
         tido mais forte de Rodrigo e recorreram ao  lha para Toledo, com o intuito
         auxílio do conde de Ceuta cuja aliança com  de ser educada junto da corte,
         o poder muçulmano do Norte de África já  como era habitual na tradição vi-
                                                                     Vista do interior.
         vinha de há alguns anos atrás. Segundo os  sigoda. Rodrigo apercebera-se da
         documentos árabes, chamar-se-ia Julião, esse  beleza da donzela assediando-a para obter os   Saindo de Lisboa a 3 de Outubro do pas-
         conde cuja origem está envolta em equívocos  seus favores, cuja ilicitude representava gran-  sado ano de 2003, o grupo da Escola Naval
         de vária ordem. Dizem alguns historiadores  de desonra para a própria e para Julião, que  foi visitar a cidade Córdova que foi o berço
         que seria um príncipe cristão berbere, vassalo  a mandou regressar imediatamente a Ceuta.  do Islão ibérico e o centro do seu mais áureo
         do rei dos visigodos que, pelas circunstâncias  Não perdoou a Rodrigo a ousadia de uma  período, vivido na fase final do emirato e do
         do poderio militar muçulmano, nesses primei-  ofensa tão grave e acabaria por abrir as por-  califado que se lhe seguiu, após a subida ao
         ros anos do século VIII acabara por aceitar a  tas da perdição do seu reino, através da aliança  poder de Abd al-Rahman III. Colocada numa
         soberania do emir de Ifrica (Tunes), Musa ibn  com os descontentes ibéricos (que eram mui-  posição central em relação ao espaço islâmico,
         Nusayr. No entanto poderá ter sido o último  tos) e com o pujante poder islâmico do Ma-  banhada pelo rio Guadalquivir, que lhe permi-
         representante do poder bizantino estabeleci-  greb. Em Junho de 711, Tarik ibn Ziyad, acom-  tia o acesso ao mar, e com fácil abastecimento
         do no Norte de África no tempo do impera-  panhado pelo próprio Julião e seus cavaleiros,  numa região agrícola relativamente fértil, ali
         dor Justiniano. Num caso ou noutro, Julião foi  desembarcou na região de Algeciras, ocupou  cresceu a cidade que ainda hoje testemunha o
         um militante activo contra Rodrigo e acabaria  o território a oeste do enorme morro que ficou  esplendor do domínio muçulmano na Penín-
         por abrir as portas da Península ao mundo  com o seu nome (Djebal Tarik, hoje Gibraltar)  sula e a grandiosidade do que foi a sua pre-
         muçulmano. Quer isto dizer que ibn Nusayr  e, rapidamente se estabeleceu num espaço de-  sença na Ibéria, cujo brilho se deve, sobretu-
         estava a par dos problemas da monarquia vi-  cisivo que garantia a continuidade dos apoios  do, à afirmação da família dos Omíadas como
         sigoda, pretendendo usar as suas fragilidades  vindos do Norte de África e a possibilidade de  emires e (depois) califas de Córdova. Esta as-
         em benefício próprio, mas não é muito claro  dar combate a Rodrigo, caso este o viesse ata-  censão política deve-se sobretudo à queda do
         que pensasse, desde logo, numa ocupação  car. Assim aconteceu em 19 de Julho de 711,  califado de Damasco no ano de 750, pondo-se
         territorial com a dimensão que esta veio a as-  resultando o confronto numa enorme derrota  termo a uma fase do domínio islâmico exerci-
         sumir. Pelo menos não o fez com a convicção  para os aliados de Rodrigo, que abriu as portas  do a partir da Síria, centro nevrálgico de um
         necessária para se empenhar pessoal mente  à rápida progressão muçulmana, ao ponto de  poder faustoso no requinte de ideias e de há-
         numa campanha militar. Porém, em 711 en-  em pouco mais de três anos dominarem qua-  bitos que caracterizavam o Império Bizanti-
         viou à Hispânia um dos seus generais, que,  se toda a Península. A batalha teve lugar nuns  no. O novo califado (Abássida) transferir-se-ia
         mais uma vez teve a colaboração activa do  terrenos junto ao rio Barbate, cuja designação  para Bagdad – numa atitude que mostra bem
         conde Julião, com o fornecimento de navios  árabe é Wadi Bakka ou Wadi Lakko e que le-  uma abertura mais clara ao Índico e ao orien-
         e de homens armados, para combater o exér-  vou à interpretação errónea de que teria sido  te em geral –, e toda a família do velho califa
         cito de Rodrigo.                   junto do rio Guadalete, cuja localização é bas-  (família Omíada) foi perseguida e chacinada.
           Diz uma antiga lenda árabe (que foi adop-  tante afastada do local em causa. Em Outubro  Apenas Abd al-Rahman conseguiu viajar até
         tada pela tradição cristã ibérica) que o conde  de 711, Córdova tinha sido conquistada, e To-  à Península e obter a protecção dos cavaleiros
         Julião, vivendo em Ceuta, mandara a sua fi-  ledo rendera-se sem luta pouco tempo depois,  sírios que para aí tinham emigrado recente-

         14  MARÇO 2004 U REVISTA DA ARMADA
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