Page 90 - Revista da Armada
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A MARINHA DE D. MANUEL (45)



                         Do desastre de Mamora
                         Do desastre de Mamora

                     ao fim da política imperial
                     ao fim da política imperial



               o mesmo ano em que partiu para   Foi dentro deste ambiente que se partira  vantamento hidrográfico, com um estudo do
               Azamor a esquadra de 500 velas,  para a conquista de Azamor, de onde o du-  terreno circundante que, todavia, não viria a
         Ncujo sucesso foi descrito no núme-  que de Bragança, D. Jaime, parece ter regres-  ter grandes resultados na execução da própria
         ro anterior, mandou o rei D. Manuel uma  sado desmoralizado com o futuro do projecto  expedição. A armada partiria a 13 de Junho de
         enorme embaixada ao papa Leão X, com o  imperial manuelino, mas sem que os seus re-  1515, com cerca de 200 velas e 8000 homens, sob
         aparente objectivo primá-                                                          o comando de D. António de
         rio de reiterar formalmen-                                                         Noronha. Passou pelo Algar-
         te a homenagem e a obe-                                                            ve e chegou ao local no dia 23
         diência devida ao sucessor                                                         (era dia de S. João e, por isso,
         de S. Pedro. Mostrava-se as-                                                       o local se chamou de S. João
         sim como um paladino da fé                                                         de Mamora), desembarcan-
         cristã, mostrando-se à Euro-                                                       do sem dificuldade e come-
         pa como o soberano que                                                             çando a montar uma fortale-
         melhor servia os desí gnios                                                        za de madeira, que serviria
         de Deus, levando a mensa-                                                          de protecção às obras de uma
         gem de Cristo a toda a par-                                                        outra construção em pedra,
         te. Um faustoso cortejo des-                                                       mais sólida e definitiva. Mas,
         filou pelas ruas de Roma ao                                                         curiosamente, o local da for-
         som de trombetas e tambo-                                                          taleza parece mal escolhido.
         res surpreendendo, sobre-                                                          Estava à beira do rio, abai-
         tudo, pela exótica encena-                                                         xo de um pequeno outeiro
         ção a que não faltou um                                                            sobranceiro que se tornaria
         magnífico cavalo persa,                                                            um verdadeiro quebra cabe-
         duas onças de caça e de um   A Cisterna Portuguesa de Mazagão construída por Lourenço Franco, é ainda hoje uma das mais belas   ças para os portugueses. Não
                                obras arquitectónicas deixadas pelos portugueses no Norte de África.
         elefante que fazia diversas                                                        conheço nenhum estudo su-
         habilidades. Mas, para Leão X, o mais impor-  ceios tivessem grande eco na corte. Logo após  ficientemente pormenorizado sobre a situação
         tante da embaixada esteve, com certeza, nas  a histórica embaixada, organiza-se nova ex-  militar de toda a zona, mas arrisco supor que a
         riquezas oferecidas, que somavam um valor  pedição de monta, aparentemente preparada  escolha do local da fortaleza seria adequado à
         entre 300 000 a 500 000 cruzados. Tristão da  com grandes precauções de natureza militar e  protecção de uma armada, mas não tivera em
         Cunha – que dirigia a embaixada – teve a  apoiada por uma especial bula de Leão X, que  conta a possibilidade de um ataque vindo do
         sua primeira audiência com o papa a 20 de  foi levada em procissão até à Sé, e solenemente  interior. A menos que – como aconteceu nou-
         Março de 1514, mas seguiram -se outros en-  pregada à multidão pelo bispo D. Diogo Ortiz.  tras circunstâncias – mais tarde viessem a ser
         contros que concretizaram quase todos os  O objectivo era a foz do rio Cebu, onde já ha-  construídos outros baluartes, em posições ade-
         objectivos de D. Manuel.           via um pequeno povoado de nome Mamora.  quadas. A verdade é que os mouros tiveram
           Recorde-se que Leão X foi o papa que  Aliás, as conquistas portuguesas procuravam  tempo para tudo, e as gentes que para ali fo-
         recebeu as críticas de Lutero por causa do  sempre estas entradas de rios que, normal-  ram enviadas com a missão de combater não
         fausto com que continuou as obras da ba-  mente, tinham capacidade de fornecimento  levavam muito mais que a fé nos benefícios
         sílica de S. Pedro, renovando o processo de  de água e lenha, eram acessíveis pelo mar e,  da cruzada: não estavam preparados técnica e
         venda de indulgências nos termos em que  ao mesmo tempo conferiam uma melhor pro-  psicologicamente para uma natural oposição,
         fora lançado pelo seu antecessor Júlio II. A  tecção contra as agruras do mau tempo e dos  e, quando foi dada ordem para retirar (10 de
         gravidade da situação e o luxo sustentado  piratas. O problema que sempre se colocava  Agosto), precipitaram-se numa debandada
         pela corte pontifícia foram uma das causas  era a capacidade de cultivar os campos circun-  sem nexo que levou à perda de mais de metade
         determinantes da grave secessão da igreja  dantes, tarefa que era entregue às populações  do pessoal, de grande quantidade de artilharia
         cristã, podendo adivinhar-se a importân-  locais, que ficavam sob protecção. Mas essa so-  e de cerca de cem navios, afundados, ou enca-
         cia que teriam as dádivas de D. Manuel.  lução exigia uma habilidade política que rara-  lhados na barra. As circunstâncias políticas da
         Naturalmente que o rei sabia disso e tinha  mente foi tida em conta.  resistência aos portugueses no Norte de África
         – como já vimos – objectivos claros para   Em 1514, um documento assinado pela mão  agravou-se com este desastre e, a partir daí, o
         uma acção no Oriente e no Norte de Áfri-  do secretário de D. Manuel ordena que Estê-  caminho foi francamente o da decadência, até
         ca, para os quais queria o benefício da pre-  vão Rodrigues Bério e João Rodrigues proce-  ao abandono da maioria das praças, no reinado
         gação da cruzada, com todas as vantagens  dessem, discretamente, ao reconhecimento da  de D. João III. Em 1550, Portugal apenas deti-
         económicas directas que daí lhe advinham,  barra do Cebu, tomando medidas do fundo, da  nha Ceuta e Tânger, sobre o Estreito de Gibral-
         e com as motivações espirituais que facilita-  amplitude da maré, da quantidade de navios  tar, e Mazagão na região sul, que acabaria por
         vam os recrutamentos e a organização das  que ali poderiam entrar, das características da  ser reforçada, e constituir um baluarte encrava-
         expedições. Digamos que há um contexto  terra em ambas as margens, da existência de  do numa zona absolutamente hostil, mas com
         europeu em que estas coisas se inserem e  madeira, de pedra para construção, das con-  vantagens comerciais significativas.
         que é preciso ver com atenção, para que as  dições de uma pequena ilha ali existente (se              Z
         acções dos portugueses não sejam conside-  a artilharia ali colocada atingiria uma e outra   J. Semedo de Matos
         radas avulsas e descoordenadas.    margem), etc.. Tratou-se de um verdadeiro le-                  CFR FZ

         16  MARÇO 2004 U REVISTA DA ARMADA
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