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mente. Foi aclamado como emir de Córdova salas riquíssimas, vastos jardins com recantos O grupo da Escola Naval teve ocasião de
ou senhor do mundo muçulmano peninsu- floridos de lazer e meditação, ao gosto desse visitar demoradamente a mesquita/catedral
lar, não ousando, apesar de tudo, chamar-se mundo oriental, marcado pela alternância de de Córdova, podendo aperceber-se da gran-
de califa, talvez com receio de criar uma divi- deserto e oásis. Os mais ricos habitantes de diosidade daqueles três séculos de domínio
são política e religiosa no mundo muçulma- Córdova seguem o exemplo do soberano, e o Omíada, que corresponderam à evolução a
no, que poderia ser contraproducen- partir de um conjunto arquitectónico
te para os seus próprios objectivos de central, construído no tempo de Abd
poder no al-Andaluz (o espaço mu- al-Rahman I, até à última ampliação
çulmano da Península Ibérica). Não feita por Almançor, que lhe deu a área
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deixou, contudo, de ser um verdadei- total de 22 423 m (mais de dois hec-
ro rei, construindo uma corte e desen- tares), com 175m de comprido por
volvendo uma capital vincadamente 128m de largo. A evolução da pró-
inspirada pelos gostos e sensibilida- pria mesquita permite compreender
des do califado de Damasco, com o a dimensão do poder do emirato até
mesmo fascínio pelo requinte e pelo Abd al-Rahman II (primeira metade
saber gregos. do sec. IX), que se afirmou como
Córdova foi um povoado amu- soberano das três religiões do livro
ralhado, com grande prestígio no (e tinha orgulho em chamar-se as-
final do período romano, teve uma sim), a afirmação do califado, com
importância irregular durante o do- Abd al-Rahman III em 929 (assumiu
mínio cristão visigótico (é de notar o emirato em 912 e intitulou-se califa
que o rei Rodrigo era oriundo de em 929) e o esplendor do Islão ibérico
Córdova), mas é na época islâmica, na passagem do século X ao XI, quan-
após a ascensão de Abd al-Rahaman do o poder já era exercido pelo perfei-
I que assume a importância que ain- to do palácio califal (Almançor).
da hoje lhe reconhecemos e que jus- Quando São Fernando entrou
tifica a sua classificação como Patri- Um dos muitos páteos floridos de Córdova. em Córdova, fascinado pela beleza
mónio da Humanidade. A “Cidade da mesquita, determinou que nela
Muçulmana” é um local à beira do deserto, actual fascínio da cidade, no seu todo, resul- ninguém tocasse, limitando-se a consagrá-la
sempre pronta a receber os viajantes que che- ta precisamente do inesperado dos pequenos como catedral dedicada à mãe de Jesus. Mas
gam por bem e a defender-se da razia. A sua pátios encravados num dédalo de ruelas es- quis o andar dos tempos que essa atitude não
vida cresce à volta da mesquita, local de culto, treitas que parecem não ir dar a lado nenhum, fosse perene. Ainda durante o século XV, ape-
que deve ter condições para albergar grande mas que nos surpreendem com o insólito de sar da oposição inicial da própria Isabel a Ca-
número de fiéis na oração de sexta-feira, com um caramanchão florido, com um recanto de tólica, o bispo de Córdova acabou por obter
espaço para as abluções obrigatórias e com o sombra e sossego ou com um pequeno largo autorização para fazer alterações significativas
carácter grandioso que têm os locais sagrados. de formato irregular. O traçado das ruas nas- na construção muçulmana. Mas o ataque mais
A mesquita de Córdova foi tudo isso e ainda ce depois da construção dos edifícios feitos à avassalador à harmonia do edifício, viria a ser
um espelho da afirmação dos Omíadas expul- medida dos seus proprietários e sem nenhum desenvolvido pelo bispo Alonso Manrique de
sos de Damasco. À volta dela se desenvolveu planeamento urbano prévio. Os bairros dife- Lara, já no reinado de Carlos V. Nessa altura
o espaço habitacional que – no período áureo renciam-se na própria teia porque são conjun- foi destruída quase toda a parte central, cor-
– pode ter albergado cerca de 100 000 pesso- tos de acesso mais reservado (acesso apenas respondente à ampliação de Abd al-Rahman
as intra-muros e mais de 200 000 no seu total, por um arco ou por uma rua mais estreita) II, emergindo uma catedral gótica que cons-
que incluía vastos arrabaldes e bairros perifé- que correspondiam, noutros tempos, às zo- titui uma verdadeira agressão arquitectónica
ricos. O poder do Emir (depois califa) fazia- nas onde viviam os judeus, os cristãos, os tu- e um rude golpe na herança cultural da Cór-
se sentir no próprio fausto da arquitectura telares de certos ofícios ou profissões, etc.. E dova dos últimos califas, de São Fernando e
e na acção dos funcionários, uma vez que a este traçado muçulmano da cidade, pouco se de Afonso X. O próprio Carlos V, quando por
sua figura pes soal vive resguardada das vis- alterou com a conquista cristã, levada a cabo ali passou a caminho de Sevilha, onde casa-
tas públicas, num mundo palácio pejado de por Fernando III (São Fernando) e consolida- ria com Isabel de Portugal, apercebendo-se do
da em 29 de Junho de 1236: a inovação mais erro que cometera ao dar autorização para a
significativa foi a construção do Alcazar dos alteração, disse ao novo bispo, Frei Juan de
Reis Cristãos (por ordem de Afonso XI), junto Toledo: “se tivesse visto o que aqui estava,
ao rio, para oeste da catedral e do antigo pa- nunca teria permitido que se lhe mexesse: es-
lácio califal, que os reis de Castela não que- tais a construir o que existe por toda a parte, e
riam habitar. A mesquita foi sagrada como haveis destruído o que era único no mundo”.
catedral e dedicada a Santa Maria Maior, e a Era tarde demais. Mas a herança de Córdova
cidade adaptada às novas circunstâncias, com permanece e a principal lição que se aprende
a ocupação dos lugares deixados vagos pelos com a sua visita é a mensagem desses tem-
mouros em fuga. Mas há uma particularida- pos: é a imagem de Córdova dos poetas, dos
de que é importante salientar: o historial do filósofos (como Averroes, a quem se deve o
período Omíada de Córdova foi marcado por conhecimento de Aristóteles, no Ocidente Me-
uma desigual, mas permanente, convivência dieval), dos médicos (como o judeu Moimó-
entre muçulmanos, judeus e cristãos (moçara- nides), dos artistas, dos jardins, da biblioteca
bes); e este fenómeno de tolerância e convívio califal que chegou a ter 40 000 volumes, de um
cultural, que compôs a grandiosidade da ci- saber e de uma cultura que geraram figuras
dade, permaneceu nos anos que se seguiram como Afonso X de Leão e Castela e D. Diniz
à conquista, sendo de salientar especialmen- de Portugal.
te o período em que reinou Afonso X, o sábio Z
(filho do conquistador Fernando III e avô do J. Semedo de Matos
Averróis, filósofo cordovês do séc. XII. nosso rei D. Diniz). CFR FZ
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