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A MARINHA DE D. JOÃO III (12)



                            O direito às Molucas:
                             O direito às Molucas:

                          uma resolução política
                          uma resolução política


         A                                  uma esquadra a essas longínquas paragens,  que o governasse (o próprio Magalhães tinha
               compreensão do problema diplo-
                                            dizendo das dúvidas sobre se a cidade estará  morrido), outro, Trinidad, fora aprisionado
               mático que opôs as duas coroas ibé-
               ricas, por causa do direito de posse  “dentro das nossas marcas”. O seu propósito  por Jorge de Brito em Ternate, e o terceiro,
         sobre as Molucas, não passa pela constata-  é o de ocupar o local quanto antes, porque a  comandado por Sebastião Delcano, arribava
         ção actual (desde o século XVIII) de que as  presença portuguesa de facto lhe dará “muito  a San Lucar de Barrameda em Setembro de
         ilhas ficavam, efectivamente no “hemisfério  direito”. E nestas observações se entende a  1522. Viajando das Molucas para sul passa-
         português” deduzido do Tratado de Tor-  forma como D. João III vai encarar o problema  ra por Timor e fizera a viagem, com pilotos
         desilhas. Os factos – incluindo as                                            locais, passando a sul de Java e Sa-
         questões de natureza geográfica                                                matra para escapar ao movimen-
         – têm de ser observados e anali-                                              to de Malaca. D. João enviou, de
         sados recuando até aos anos vinte                                             imediato, uma carta ao impera-
         do século XVI, assumindo os va-                                               dor exigindo a prisão e castigo
         lores e a maneira de ser daquelas                                             dos tripulantes e a entrega das
         gentes, tendo em conta os seus an-                                            mercadorias que seriam pertença
         seios e, sobretudo, pensando nas                                              da coroa portuguesa, mas Carlos
         incapacidades da época. Em pri-                                               V alegou que o navio tinha nego-
         meiro lugar, é preciso não esque-                                             ciado em zona da sua soberania,
         cer que ninguém poderia afirmar                                                contrapondo que era a presença
         com certeza incontestável qual a                                              portuguesa naquelas ilhas que não
         longitude das Molucas ou qual a                                               era legítima. Em 1524, reuniu-se no
         distância em graus que as separa                                              Caia (Badajoz-Elvas) uma junta de
         da Península Ibérica ou de uma                                                especialistas dos dois países, com
         qualquer “linha direita” de pólo a                                            o intuito de chegar a uma solução,
         pólo localizada 370 léguas a oeste                                            mas os resultados foram absoluta-
         de Cabo Verde, como está no tex-                                              mente nulos. Efectivamente falou-
         to do tratado assinado em 1494. É                                             -se da marcação do meridiano no
         verdade que o primeiro problema                                               Atlântico, discutiu -se se a conta-
         com que se defrontaram os repre-                                              gem das 370 léguas de Tordesilhas
         sentantes de D. João III e Carlos V                                           deveriam ser contadas a partir da
         foi o de saber onde passava, no   Carta anónima de 1522, atribuída a Pedro Reinel, um cartógrafo português ao servi-  ilha da Boavista, o que iria benefi-
         Atlântico, esse meridiano, uma   ço de Castela. Nela se podem ver as Ilhas Molucas, erradamente colocadas a leste do   ciar os portugueses, ou de Santo
         vez que nunca tinha sido cum-  meridiano de Tordesilhas (linha a vermelho), no “hemisfério castelhano”.   Antão, que seria prejudicial aos
         prida a cláusula do tratado que previa uma  cerca de duas décadas depois. Ele sabe que  interesses nacionais, não se chegou sequer a
         expedição técnica para esse efeito. Haviam,  não tem argumentos para justificar o domínio  acordo quanto ao valor do grau terrestre em
         a liás, muitas indefinições resultantes do texto  português à luz do Tratado Tordesilhas e sabe  léguas, extremando-se posições em torno de
         do próprio tratado, contudo, todas elas me  que os seus adversários tampouco o podem  duas ideias: os portugueses afirmavam a sua
         parecem irrelevantes em face da impossi-  fazer. De forma que tenta fazer valer os seus  prioridade nas Molucas e os Castelhanos o
         bilidade de determinar longitudes no mar,  direitos afirmando a prioridade portuguesa  seu direito pelo Tratado. Carlos V, no entan-
         e, portanto, de marcar com exactidão, num  em Malaca e nas Molucas. A primeira prova-  to, teve uma noção clara do impasse e aceitou
         mapa, as referidas ilhas. E é nesta incapaci-  -se com a existência da própria fortaleza, mas  protelar o problema em troca de uma renda
         dade que reside o cerne da questão. É porque  a segunda é menos evidente, uma vez que o  pecuniária. D. João III sabia das dificuldades
         não há uma solução científica incontestável  poder lusitano ainda não está bem definido,  financeiras do imperador e seduziu-o com a
         que os dois reinos esgrimem argumentos e  justificando-se apenas com uma meia dúzia  hipótese de pagar essa renda que ficou as-
         consi derações cujo fundo é absolutamente  de viagens comerciais que decorreram na se-  sente ser de 40 mil ducados anuais até outra
         político – sem nenhuma objectividade – até  gunda década de quinhentos.  resolução. Não era muito mau para Portugal:
         que D. João III decide propor a compra do   Quando Fernão de Magalhães saiu de Se-  estando em dívida o dote da rainha D. Cata-
         direito em discussão pela quantia de 350 mil  vilha em busca de uma passagem na América  rina, o monarca português estava a negociar
         ducados de ouro.                   do Sul que desse acesso ao Pacífico e ao Orien-  com uma dívida e não com dinheiro propria-
           Desde a primeira década daquele século  te onde os portugueses já andavam há alguns  mente dito. Além de tudo era uma dívida que
         que se pressentia o problema de uma deli-  anos, o rei de Portugal protestou de imediato  dificilmente conseguiria cobrar. De forma que
         mitação oriental das zonas de acção das duas  junto de Carlos V exigindo uma garantia de  o assunto ficou assim até 1529, quando foi as-
         coroas. Em 1506, D. Manuel tem uma clara  que os navios não cruzariam as águas de ju-  sinado o acordo de Saragoça: Portugal paga-
         noção disso, e transmite-o numa carta que es-  risdição portuguesa. O imperador garantiu-o  ria a quantia de 350 mil ducados pela posse
         creve ao vice-rei D. Francisco de Almeida ins-  de imediato, mas as notícias vindas a Lisboa,  definitiva das Molucas, comprometendo-se o
         tando-o a que, rapidamente, avance para Ma-  certamente, após a chegada da nau Vitória re-  imperador a devolvê-los caso se viesse a pro-
         laca e aí construa uma fortaleza que sustente a  velavam, provavelmente em primeira mão, o  var a razão portuguesa.
         presença portuguesa e garanta o controlo do  que se tinha passado nas Molucas: ali tinham             Z
         comércio no Extremo Oriente. Nessa carta, o  chegado três navios castelhanos, dos quais   J. Semedo de Matos
         rei refere que Castela se prepara para enviar  um tinha sido abandonado por falta de gente        CFR FZ

         16  MAIO 2006 U REVISTA DA ARMADA
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