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A MARINHA DE D. JOÃO III (8)



                    Os navios de remo na Índia
                    Os navios de remo na Índia



              empre que se fala no poder naval  repor a discussão e análise do problema dos  suprir esta dificuldade constituíam-se esqua-
              português na Índia, durante o sécu-  “navios de remo” e a sua utilidade no con-  dras mistas, com navios de alto bordo e em-
         Slo XVI, normalmente pensa-se nos  texto do poder naval português no Índico,  barcações de remos de várias dimensões.
         navios de alto bordo (naus, galeões e cara-  levantando questões que têm continuidade   É sabido que com armada de D. Francisco
         velas), com uma razoável capacidade arti-  nas décadas sequentes.     de Almeida (1505) foram levadas duas ga-
         lheira que, sobretudo, não tinha                                             lés e dois bergantins que deveriam
         paralelo nos mais directos adver-                                            ser montados na Índia; e Afonso
         sários locais. Acontece, no entanto,                                         de Albuquerque foi um sério par-
         que este tipo de navios tinham al-                                           tidário da utilização deste tipo de
         gumas limitações militares, quan-                                            embarcações, dizendo numa car-
         do confrontados com os enxames                                               ta a D. Manuel que – quando não
         de embarcações ligeiras, mano-                                               houver perigo de reaparecerem
         bradas a remo, que se escondiam                                              esquadras de “rumes” – os portu-
         em barras apertadas, em zonas de                                             gueses poderão dominar a Índia
         pouca água ou mesmo por entre                                                apenas com galés. Não creio que
         densos arvoredos, de onde lança-                                             isso fosse possível por causa das
         vam mortíferos ataques. Não rara-                                            limitações de abastecimento das
         mente, os ligeiros catures e paraus                                          chusmas, mas verificamos que,
         da costa indiana podiam alargar-                                             com o decorrer dos anos, há uma
         se umas milhas ao largo, surpreen-                                           progressiva utilização deste tipo de
         dendo esquadras inteiras, quando                                             meios. Provavelmente, só a partir
         imobilizadas pela falta de vento. É                                          dos anos de 1521 ou 1522 é que se
         fácil de entender como o faziam,                                             torna sistemática a formação de
         se nos lembrarmos que alguns                                                 esquadras mistas, parecendo-me
         dos trajectos dos grandes navios                                             que D. Henrique de Meneses – go-
         redondos eram feitos ao longo da                                             vernador em 1525, após a morte de
         costa, podendo ser avistados de                                              Vasco da Gama – foi um dos mais
         terra. Se permanecessem encalma-                                             notáveis patrocinadores desta for-
         dos durante uns dias, havia tempo                                            ma de actuar, demonstrando-o na
         para preparar as tais embarcações,                                           própria viagem que fez entre Goa
         que atacavam os portugueses, ma-                                             e Cochim, quando foi tomar posse
         nobrando com enorme ligeireza                                                do cargo. Saiu numa armada com
         e aproveitando os ângulos mor-                                               treze “velas grossas”, duas galés,
         tos da artilharia embarcada. Um                                              três galeotas, vinte fustas e catu-
         exemplo desta forma de actuar,                                               res. Junto do ilhéu de Baticalá, so-
         e das dificuldades que se levan-  “Galé de três mastros (provavelmente a que foi designada por bastarda), como foi   prando uma pequena brisa vinda
         tavam aos navios de alto bordo,   representada por D. João de Castro nas Tábuas dos Roteiros da Índia”   do lado de terra, umas dezenas de
         está num combate travado ao largo de Diu,   Na verdade, as grandes rotas – aquelas por  catures inimigos avistaram os navios de
         em Setembro de 1521, entre quatro navios  onde andavam as chamadas Naus de Meca ou  vela a navegarem ao largo, e resolveram
         portugueses e uma enorme frota de fustas  outros navios de vela de grandes dimensões,  atacá-los convencidos da vantagem táctica
         guzerates de Malik Ayas. Gaspar Correia,  com valiosas cargas – eram guardadas pelos  que tinham. Não se aperceberam das em-
         nas Lendas da Índia, é muito claro no seu  navios de alto bordo – nomeadamente pelas  barcações que iam cosidas com terra – onde
         relato, dizendo-nos como pelejavam “os  naus e galeões – cuja capacidade guerreira  ia o governador – que as atacaram por bar-
         mouros às bombardadas, que desfazião os  era notável. Todavia, uma parte dessas rotas  lavento e lhes cortaram a retirada com que
         nauios, e as rachas da madeira matauão e  estava ao alcance das pequenas embarcações  contavam, se o combate corresse mal. A vi-
         ferião gente”, e que “quando as fustas que-  de remo, por vezes bem artilhadas, que ata-  tória foi estrondosa.
         rião descansar, ou se concertar, tomauão  cavam, sobretudo, quando a falta de vento   D. Henrique de Meneses mandou cons-
         o remo e se afastauão longe a barlauento  dificultava a manobra dos navios grandes.  truir uma enorme galé de trinta e três rumos
         onde os nossos nom podião chegar”. Nes-  Pissarra chama-nos a atenção para a presença  e meio (cerca de cinquenta metros) com a
         tas condições, e ao cabo de vários dias de  crescente de galés, galeotas, bergantins, fus-  qual participou em várias acções guerreiras.
         fustigações permanentes, foi afundada a  tas e outras pequenas embarcações de remo  Aparece designada como “galé bastarda”
         nau “Ajuda”, sem que os outros a pudes-  confiscadas ou adaptadas pelos portugueses,  talvez pela singularidade da sua armação
         sem socorrer “porque o campo era das fus-  salientando a forma como elas passaram a in-  ou apenas pelo seu tamanho irregular. De
         tas”, como comenta Gaspar Correia.  tegrar as esquadras nacionais, quer na costa  acordo com o Alardo de 1525 teria um poder
           Já noutra altura tive ocasião de referir  indiana, quer na zona de Ormuz e Mar Ver-  de fogo semelhante a um galeão. Só não te-
         uma dissertação de mestrado, de José Virgí-  melho. O principal problema da utilização  ria capacidade de transporte das munições
         lio Pissarra, que aborda alguns dos proble-  destas embarcações estava, naturalmente, no  e pólvora necessárias para uma campanha
         mas mais candentes das armadas portugue-  seu abastecimento: repare-se que a sua capa-  prolongada, mas isso era uma das razões
         sas na Índia, neste princípio do século XVI.  cidade de carga era diminuta e a chusma de  porque as esquadras eram mistas.  Z
         Apesar do seu trabalho se debruçar sobre o  remadores obrigava ao transporte de grandes   J. Semedo de Matos
         período de 1501 a 1510, cabe-lhe o mérito de  quantidades de água e mantimentos. Para             CFR FZ

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