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para fugir para o Brasil. Acusado de produ- verso toda a sua raiva. Bocage responde-lhe rer aos préstimos dos amigos. Para agravar a
zir escritos subversivos, de ser “desordena- à letra no poema satírico “Pena de Talião”, situação, manifestam-se os primeiros sinto-
do nos costumes” e de não cumprir com os que, apesar de não ser dado à estampa, cir- mas da doença que lhe viria a ser fatal: fortes
preceitos da Igreja, é encarcerado na cadeia cula nos meios literários da Capital. cefaleias e uma acentuada fadiga indiciando
do Limoeiro. um grave aneurisma (provavelmente lo-
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Dali escreve desesperadamente aos calizado na aorta ) com incidência nas ca-
seus amigos mais influentes, em busca rótidas. Admite-se que esta doença possa
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de auxílio. Estes, porém, de pouco lhe ter tido origem venérea , sinal inequívoco
podem valer, pois sentem-se intimidados de uma vida desregrada.
pelo clima geral de repressão e de denún-
cia. Contudo, passado algum tempo, as UM FIM E UM COMEÇO
acusações de delito contra o Estado são
alteradas para “erro contra a Religião”, Em 1805, por acção do álcool e do ta-
o que era muito menos grave, apesar de baco, aliados a um rigorosíssimo Inver-
implicar passar para a tutela do famige- no (em que chega a nevar em Lisboa),
rado Santo Ofício (vulgo Inquisição). É o estado de saúde do Poeta agrava-se
que, na altura, mercê da acção reforma- consideravelmente. O falecimento pre-
dora do Marquês de Pombal, já aquele coce da sua sobrinha, então com cinco
tribunal perdera grande parte dos seus anos, vem deixá-lo ainda mais abalado.
sinistros poderes, apresentando-se, por Não é, assim, de admirar que em Março
conseguinte, muito mais brando. Teria comecem a circular rumores sobre a sua
esta “comutação de pena” sido, afinal, morte. A comoção geral é tamanha que o
obra das pressões dos amigos de Boca- leva a comentar ironicamente a hipocri-
ge, ou estaria, pelo contrário, relacionada sia dos que o carpiam em “morto” sem
com o desejo do Intendente de recuperá- jamais o terem chorado em vida.
-lo para a sua causa? Retrato de Bocage, pelo pintor Elói. Contudo, apesar da falsidade da notí-
Assim, após uma breve passagem pelo Câmara Municipal de Setúbal. cia, era inegável que a sua hora se apro-
convento de S. Bento da Saúde, é internado, Mas a boa estrela do vate sadino começava, ximava a passos largos. Acaba, assim, por
em Março de 1798, no Real Hospício das definitivamente, a declinar: no final do ano a admitir que os amigos lhe enviem o pintor
Necessidades. Num clima de tranquilidade Oficina Tipográfica do Arco do Cego encer- Henrique José da Silva para lhe pintar o re-
e de ameno convívio com os monges Ora- ra as suas portas, deixando-o sem um meio trato, o terceiro com carácter oficial (os outros
torianos, tem tempo de sobra para meditar de subsistência. É, então, forçado a mudar-se dois tinham sido pintados, respectivamente,
e prosseguir a escrita das suas obras. Sai no para uma ha- em 1797 – pouco an-
último dia daquele ano, aparentemente “re- bitação mais tes da sua prisão – e
educado”. Se não estava verdadeiramente modesta, na em 1801).
doutrinado – o que será o mais provável – Travessa de
passou, pelo menos, a mostrar-se muito mais André Valen-
cauteloso. Basta observar que nunca mais te, no Bairro
frequentou de modo regular os botequins Alto, onde dá
onde a sua presença era habitual. guarida à sua
Pouco tempo depois consegue um empre- irmã Maria
go fixo, fazendo revisões de texto e traduções Francisca, mãe
na prestigiada Oficina Tipográfica e Literária solteira de uma menina, que ficara desampa-
do Arco do Cego. É-lhe atribuído um ven- rada depois da morte do pai.
cimento mensal de vinte e quatro mil réis, No ano seguinte é denunciado à Inquisição
que se pode considerar um salário bastante como pedreiro-livre, denúncia essa que aca-
elevado para a época. ba por não ter consequências de maior, pois
Nesse mesmo ano (1799) dá ao prelo o se- devido à crescente pressão da França sobre
gundo tomo de Rimas, que inclui traduções o Governo Português a influência de Pina
de algumas obras estrangeiras e de autores Manique estava cada vez mais esbatida. Este
clássicos da Antiguidade (através da sua episódio parece, porém, demonstrar que, não
pena chegaram aos leitores portugueses obstante a “conversão” exterior, Bocage man-
grandes obras da literatura internacional). tinha intactas as suas ideias liberais.
A Censura mostra-se bastante tolerante. É Depois de um ano praticamente sem pro-
que o Poeta passara a ser uma personalidade dução literária digna de registo, publica, em
prestigiada e bem vista pelo Governo, che- 1804, o terceiro tomo de Rimas, reunindo al-
gando a dedicar poemas à Rainha e ao Prín- guns dos seus trabalhos dispersos. O parecer
cipe Regente. Não é, assim, de estranhar que da Comissão de Censura é altamente favorá-
em 1801 se junte aos árcades e à sua conterrâ- vel (apesar de ter demorado nove meses a sair)
nea Luísa Todi numa sessão cultural organi- e as críticas recebidas consagram o autor como
zada por Pina Manique no castelo de S. Jorge um dos maiores poetas portugueses. Entre as
para comemorar a Paz de Badajoz celebrada que mais o sensibilizam está a do Padre Fran-
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entre Portugal e a Espanha . cisco Manuel do Nascimento (conhecido na
Ainda em 1801 é novamente convidado Arcádia como Filinto Elíseo), poeta de renome,
pelo Intendente, desta vez para participar exilado em França por ser considerado sub-
numa festa comemorativa da paz com a versivo. O regozijo então sentido levam-no a
França no Teatro de S. Carlos. Ao ver amea- exclamar “Posteridade! És minha!”
çada a sua posição de poeta favorito da Cor- Mas o êxito não o impede de começar a sen- Casa na Travessa de André Valente – Bairro Alto, onde
te, José Agostinho de Macedo destila em tir problemas financeiros, que o levam a recor- morreu Bocage.
20 JANEIRO 2006 U REVISTA DA ARMADA