Page 22 - Revista da Armada
P. 22

para fugir para o Brasil. Acusado de produ-  verso toda a sua raiva. Bocage responde-lhe  rer aos préstimos dos amigos. Para agravar a
         zir escritos subversivos, de ser “desordena-  à letra no poema satírico “Pena de Talião”,  situação, manifestam-se os primeiros sinto-
         do nos costumes” e de não cumprir com os  que, apesar de não ser dado à estampa, cir-  mas da doença que lhe viria a ser fatal: fortes
         preceitos da Igreja, é encarcerado na cadeia  cula nos meios literários da Capital.  cefaleias e uma acentuada fadiga indiciando
         do Limoeiro.                                                             um grave aneurisma (provavelmente lo-
                                                                                              12
           Dali escreve desesperadamente aos                                      calizado na aorta ) com incidência nas ca-
         seus amigos mais influentes, em busca                                     rótidas. Admite-se que esta doença possa
                                                                                                   13
         de auxílio. Estes, porém, de pouco lhe                                   ter tido origem venérea , sinal inequívoco
         podem valer, pois sentem-se intimidados                                  de uma vida desregrada.
         pelo clima geral de repressão e de denún-
         cia. Contudo, passado algum tempo, as                                    UM FIM E UM COMEÇO
         acusações de delito contra o Estado são
         alteradas para “erro contra a Religião”,                                   Em 1805, por acção do álcool e do ta-
         o que era muito menos grave, apesar de                                   baco, aliados a um rigorosíssimo Inver-
         implicar passar para a tutela do famige-                                 no (em que chega a nevar em Lisboa),
         rado Santo Ofício (vulgo Inquisição). É                                  o estado de saúde do Poeta agrava-se
         que, na altura, mercê da acção reforma-                                  consideravelmente. O falecimento pre-
         dora do Marquês de Pombal, já aquele                                     coce da sua sobrinha, então com cinco
         tribunal perdera grande parte dos seus                                   anos, vem deixá-lo ainda mais abalado.
         sinistros poderes, apresentando-se, por                                  Não é, assim, de admirar que em Março
         conseguinte, muito mais brando. Teria                                    comecem a circular rumores sobre a sua
         esta “comutação de pena” sido, afinal,                                    morte. A comoção geral é tamanha que o
         obra das pressões dos amigos de Boca-                                    leva a comentar ironicamente a hipocri-
         ge, ou estaria, pelo contrário, relacionada                              sia dos que o carpiam em “morto” sem
         com o desejo do Intendente de recuperá-                                  jamais o terem chorado em vida.
         -lo para a sua causa?           Retrato de Bocage, pelo pintor Elói.       Contudo, apesar da falsidade da notí-
           Assim, após uma breve passagem pelo   Câmara Municipal de Setúbal.     cia, era inegável que a sua hora se apro-
         convento de S. Bento da Saúde, é internado,   Mas a boa estrela do vate sadino começava,  ximava a passos largos. Acaba, assim, por
         em Março de 1798, no Real Hospício das  definitivamente, a declinar: no final do ano a  admitir que os amigos lhe enviem o pintor
         Necessidades. Num clima de tranquilidade  Oficina Tipográfica do Arco do Cego encer-  Henrique José da Silva para lhe pintar o re-
         e de ameno convívio com os monges Ora-  ra as suas portas, deixando-o sem um meio  trato, o terceiro com carácter oficial (os outros
         torianos, tem tempo de sobra para meditar  de subsistência. É, então, forçado a mudar-se  dois tinham sido pintados, respectivamente,
         e prosseguir a escrita das suas obras. Sai no  para uma ha-                             em 1797 – pouco an-
         último dia daquele ano, aparentemente “re-  bitação mais                                tes da sua prisão – e
         educado”. Se não estava verdadeiramente  modesta, na                                    em 1801).
         doutrinado – o que será o mais provável –  Travessa de
         passou, pelo menos, a mostrar-se muito mais  André Valen-
         cauteloso. Basta observar que nunca mais  te, no Bairro
         frequentou de modo regular os botequins  Alto, onde dá
         onde a sua presença era habitual.  guarida à sua
           Pouco tempo depois consegue um empre-  irmã Maria
         go fixo, fazendo revisões de texto e traduções  Francisca, mãe
         na prestigiada Oficina Tipográfica e Literária  solteira de uma menina, que ficara desampa-
         do Arco do Cego. É-lhe atribuído um ven-  rada depois da morte do pai.
         cimento mensal de vinte e quatro mil réis,   No ano seguinte é denunciado à Inquisição
         que se pode considerar um salário bastante  como pedreiro-livre, denúncia essa que aca-
         elevado para a época.              ba por não ter consequências de maior, pois
           Nesse mesmo ano (1799) dá ao prelo o se-  devido à crescente pressão da França sobre
         gundo tomo de Rimas, que inclui traduções  o Governo Português a influência de Pina
         de algumas obras estrangeiras e de autores  Manique estava cada vez mais esbatida. Este
         clássicos da Antiguidade (através da sua  episódio parece, porém, demonstrar que, não
         pena chegaram aos leitores portugueses  obstante a “conversão” exterior, Bocage man-
         grandes obras da literatura internacional).  tinha intactas as suas ideias liberais.
         A Censura mostra-se bastante tolerante. É   Depois de um ano praticamente sem pro-
         que o Poeta passara a ser uma personalidade  dução literária digna de registo, publica, em
         prestigiada e bem vista pelo Governo, che-  1804, o terceiro tomo de Rimas, reunindo al-
         gando a dedicar poemas à Rainha e ao Prín-  guns dos seus trabalhos dispersos. O parecer
         cipe Regente. Não é, assim, de estranhar que  da Comissão de Censura é altamente favorá-
         em 1801 se junte aos árcades e à sua conterrâ-  vel (apesar de ter demorado nove meses a sair)
         nea Luísa Todi numa sessão cultural organi-  e as críticas recebidas consagram o autor como
         zada por Pina Manique no castelo de S. Jorge  um dos maiores poetas portugueses. Entre as
         para comemorar a Paz de Badajoz celebrada  que mais o sensibilizam está a do Padre Fran-
                             11
         entre Portugal e a Espanha .       cisco Manuel do Nascimento (conhecido na
           Ainda em 1801 é novamente convidado  Arcádia como Filinto Elíseo), poeta de renome,
         pelo Intendente, desta vez para participar  exilado em França por ser considerado sub-
         numa festa comemorativa da paz com a  versivo. O regozijo então sentido levam-no a
         França no Teatro de S. Carlos. Ao ver amea-  exclamar “Posteridade! És minha!”
         çada a sua posição de poeta favorito da Cor-  Mas o êxito não o impede de começar a sen-  Casa na Travessa de André Valente – Bairro Alto, onde
         te, José Agostinho de Macedo destila em  tir problemas financeiros, que o levam a recor-  morreu Bocage.

         20  JANEIRO 2006 U REVISTA DA ARMADA
   17   18   19   20   21   22   23   24   25   26   27