Page 23 - Revista da Armada
P. 23

São também os seus amigos que se em-                                ram ao nosso tempo alguns fragmentos
         penham em garantir-lhe a subsistência nos   Já Bocage não sou!... À cova escura    em muito mau estado de conservação)
         seus momentos finais, recolhendo os seus   Meu estro vai parar desfeito em vento...   inclui na sua banda sonora um tema de
         manuscritos e pondo à venda folhetos com   Eu aos Céus ultrajei! O meu tormento    Carlos Calderón que viria a tornar-se ex-
         as suas poesias, o primeiro dos quais se in-  Leve me torne sempre a terra dura:  tremamente popular nas décadas que se
         titula Improvisos. E apesar de enfermo pros-  Conheço agora já quão vã figura   seguiram: a “Marcha dos Marinheiros”,
         segue a sua actividade poética até ao fim,   Em prosa e verso fez meu louco intento;   que a Marinha adoptou em 1993 como a
         embora o desencorajem de improvisar, de-  Musa!... Tivera algum merecimento   sua marcha oficial.
         vido ao intenso desgaste físico e mental que   Se um raio da razão seguisse pura!  E é deste modo poético que a Corpora-
         tal actividade lhe provoca.          Eu me arrependo; a língua quase fria    ção une, definitivamente, a sua identida-
           Nesse período reconcilia-se com antigos   Brade em alto pregão à mocidade,    de ao nome de um dos maiores poetas de
         inimigos e rivais, entre os quais José Agosti-  Que atrás do som fantástico corria:  Portugal.
         nho de Macedo. Este, porém, ter-se-á apro-                                                            Z
         veitado da debilidade do moribundo para   Outro Aretino fui... A santidade                  J. Moreira Silva
         se apoderar de vários manuscritos, sob o   Manchei!... Oh! Se me creste, gente impia,              CTEN
         pretexto de promover a sua publicação, aca-  Rasga meus versos, crê na eternidade!  Bibliografia
                                                                                 ANTÓNIO, Joaquim dos Santos Félix, Bocage – Po-
         bando por destruí-los ou fazê-los sair como                           eta e Marinheiro, O Homem e a sua Época, Lisboa, Aca-
         sendo de sua autoria.              A MARINHA E BOCAGE                 demia de Marinha, 2000
           Bocage passa o final do Outono já acama-                               ANTÓNIO, Joaquim dos Santos Félix, “Bocage – O
         do, quando se prenuncia mais um rigoroso   No ano em que Setúbal promove, com   Marinheiro, o Poeta, o Homem”, Revista da Armada,
         Inverno. Numa suposta atitude de êxtase e  um significativo conjunto de iniciativas   nº 270, Lisboa, Novembro de 1994, p. 4
                                                                                 CUTILEIRO. Alberto, “O Nome do Guarda-Mari-
         de penitência final terá composto, de uma  culturais, a dupla celebração dos 140 anos   nha Bocage e o Ingresso na Real Academia dos Guar-
         assentada, o célebre soneto “Já Bocage não  do nascimento e do segundo centenário da   das-Marinhas”, Revista da Armada, nº 112, Lisboa, Ja-
         sou”, onde se arrepende da sua irreverên-  morte do seu grande poeta, é caso para nos   neiro de 1981, pp. 19-20
                                                                                 GONÇALVES, Adelto, Bocage, o Perfil Perdido, Lis-
         cia passada e da sua vida dissoluta, embora  perguntarmos até que ponto deverá a Mari-  boa, Editorial Caminho, colecção “Biografias”, 2003
         haja dúvidas de que se trate, efectivamente,  nha associar-se a estas comemorações.  MENDES, José Agostinho de Sousa, “Um Grande
         de um improviso, devido à perfeição da sua   É certo que Bocage não foi propriamen-  Aventureiro dos Mares”, Revista da Armada, nº128, Lis-
         construção. Na verdade, podemos, mesmo,  te um modelo de marinheiro, pelo que se-  boa, Setembro de 1981, pp. 16-18
         admitir a hipótese de se tratar da obra de  ria, talvez, descabido baptizar um navio de   MENDES, José F. C., “Bocage e o Mar”, Revista da
         alguém que terá pretendido fazer passar a  guerra com o seu nome ou torná-lo patrono   Armada, nº 27, Lisboa, Dezembro de 1973, p. 6
                                                                                 OLIVEIRA, Manuel Alves de (coord.), O Grande
         imagem de um pecador arrependido.  de um curso da Escola Naval…       Livro dos Portugueses, s.l., Círculo de Leitores, 1990,
           No horizonte pairavam já as nuvens da   Contudo, a Marinha pode – e deve – or-  p.95 (BOCAGE, Manuel Maria Barbosa du)
         invasão francesa. Tal como Camões, o gran-  gulhar-se de tê-lo tido nas suas fileiras. E   SÉRGIO, António (coord.), Grande Enciclopédia
         de Vate via chegar o seu fim num momento  se tal facto por si só não bastasse outro ha-  Portuguesa e Brasileira, Lisboa-Rio de Janeiro, Edito-
                                                                               rial Enciclopédia, s.d., vol. IV, pp. 804-806 (BOCAGE,
                               14
         de grave perigo para a Pátria .    veria a mencionar:                 Manuel Maria Barbosa du)
           Morre a 21 de Dezembro, um Sábado frio   É que no ano de 1936, o filme Bocage, de
         e chuvoso que, ao estilo romântico, parece  Leitão de Barros (do qual apenas chega-  Agradecimentos
         associar-se ao sombrio evento. Chegava ao                               Ao Sr. CALM Roque Martins, pela bibliografia
         fim uma existência atormentada, não tanto   Marcha dos Marinheiros     disponibilizada.
         pelo modo de vida que conscientemente es-  Música de Carlos Calderón   Notas
         colhera, mas pela incansável e sempre insa-  Filme – Bocage – Leitão de Barros, 1936  1  Adelto Gonçalves, Bocage, o Perfil Perdido, Lis-
         tisfeita busca da Perfeição. No dia seguinte                          boa, Editorial Caminho, colecção “Biografias”, 2003,
         era sepultado no cemitério das Mercês (este   Refrão                  pp. 35-70
                                             Os marinheiros aventureiros
                                                                                 2
                                                                                  Entre os mais ilustres, encontram-se nomes como
         cemitério viria a ser desactivado em 1834,   São sempre os primeiros  Teófilo Braga e Hernâni Cidade.
         daí vindo a resultar a perda definitiva dos   Na terra ou no mar.        3  Na verdade, Gil Francisco até viria a demons-
         restos mortais do insigne Bardo).   Ao ver as belas                   trar grande orgulho em ter sido irmão de um poe-
           Logo em 1806 seria escrita a sua primeira   Pelas janelas,          ta tão famoso.
                                                                                 4  Adelto Gonçalves, op. cit., p. 88
         biografia, por António Maria do Couto. A ca-  Soltam logo as velas
                                                                                 5  Adelto Gonçalves, op. cit., p. 137
         racterística mais marcante desta obra é a sua   Para as conquistar.     6  Adelto Gonçalves, op. cit., pp. 120-125. Um dos
         gritante falta de rigor, nela abundando erros   A navegar,            rumores que circulavam era o de que o poeta teria
         crassos e profundas inexactidões.   Sobre as ondas, desde Goa,        escrito o poema como vingança por ter sido rejeitado
           Num clima de grande hipocrisia, muitos   Nós viemos a pensar        pela amante do Governador.
                                                                                 7
         viriam a tirar proveito da morte de Bocage.   Nas meninas de Lisboa.    8  Adelto Gonçalves, op. cit., pp. 116, 143
                                                                                  É neste cenário que decorre o célebre episódio
         Já a sua irmã Maria Francisca nada lucrou,   Desembarcados,           em que Bocage, tendo sido surpreendido à saída
         acabando por acolher-se sob o tecto de uma   Mesmo assim, os marinheiros  do café Nicola pelos esbirros do Intendente, que lhe
         outra irmã e de um cunhado.         Vão ficar ancorados               apontam uma pistola, responde deste modo às per-
           Quanto ao seu velho rival, José Agostinho   A uns olhos traiçoeiros.  guntas “Quem és? De onde vens? Para onde vais?”:
                                                                               “Sou Bocage, / Venho do Nicola / E vou para o Ou-
         de Macedo, parece ter esquecido rapidamen-  Salgadas pelo Mar         tro Mundo, / Se disparas a pistola.”
         te a sua “sentida” reconciliação, pois não   As nossas bocas vêm,       9  A sua extinção viria apenas a ocorrer em 1801.
         tardou a entrar em acesas polémicas com os   Vêm procurar o mel que os beijos têm,  10  Adelto Gonçalves, op. cit., p. 211
                                                                                 11  Esta paz, estabelecida na sequência da invasão
         partidários (e herdeiros espirituais) do Poe-  Que é tão bom para as adoçar.
         ta, os chamados “elmanistas”.       Largamos vela na ribeira de Pangim,  do Sul do País pelo exército espanhol, foi celebrada
                                                                               em termos muito desvantajosos – se não mesmo hu-
           Entre 1812 e 1813 saem os terceiro e quarto   A pensar numa janela enfeitada de alecrim.  milhantes - para Portugal. Entre as condições impos-
         volumes da obra poética de Bocage (mais uma   Entrando a barra,       tas figura a cedência da praça de Olivença, que muito
         vez sem qualquer proveito para a sua família)   Mal a nau chega a Belém,  viria, ainda a dar que falar.
                                                                                 12  Joaquim Félix António, Bocage – Poeta e Mari-
         e no período de 1849-50 são publicadas as suas   O marujo deita amarra  nheiro, O Homem e a sua Época, Lisboa, Academia de
         obras completas. Em 1865 a sua cidade natal   À mulher que lhe convém.  Marinha, 2000, p. 22
         promoveu grandiosas celebrações por ocasião   Refrão                    13  Joaquim Félix António, op. cit., p. 23
         do primeiro centenário do seu nascimento.                               14  Pina Manique morrera também nesse ano.
                                                                                     REVISTA DA ARMADA U JANEIRO 2006  21
   18   19   20   21   22   23   24   25   26   27   28