Page 20 - Revista da Armada
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buído aos oito anos, embora não existam ARROSTANDO C’O com destino à Índia, na nau “Nossa Senhora
provas cabais de ter sido, efectivamente, o SACRÍLEGO GIGANTE da Vida, Santo António e Madalena”. Talvez
seu autor). E a verdade é que não lhe falta- pretendesse obter experiência de feitos de ar-
vam antecedentes familiares, pois já o pai se Não obstante os já referidos antecedentes mas nas mesmas paragens por onde errara o
dedicara, na juventude, à escrita de poemas, familiares – onde ainda se incluía um bisa- seu ídolo, Luís de Camões, com quem, aliás,
embora não lhe fosse reconhecido grande parece, desde o princípio, querer forçar uma
talento e o mais provável é esta actividade comparação. A verdade é que a Rainha assi-
ter sido uma moda passageira durante os na a sua readmissão como Guarda-Marinha,
estudos feitos em Coimbra. Também uma não obstante a sua anterior baixa desonrosa,
suposta tia-avó francesa (cuja grafia do ape- pois as colónias necessitavam desesperada-
lido – Boccage – lança algumas dúvidas so- mente de braços combatentes.
bre a efectividade deste parentesco) ganhara Escala o Rio de Janeiro, onde, setenta e
nome como poetisa. cinco anos antes, o seu avô se distinguira
Em Setúbal, a família Bocage é presença no combate à esquadra de Duguay-Trouin,
assídua na casa do Brigadeiro João Cunha para embarcar o novo Governador da Índia.
D’Eça, de cuja filha – Gertrudes – Gil Fran- O seu bom trato e a sua popularidade (sem
cisco se enamora. E surge aqui um dos as- esquecer alguns poemas elogiosos dirigidos
pectos mais romanceados da vida de Ma- às pessoas certas) fazem com que se dê bem
nuel Maria: uma pretensa rivalidade com o na sociedade carioca, ganhando os favores
irmão na disputa dos amores da bela don- do Vice-Rei.
zela, prontamente identificada com a mítica Chegado a Goa, mostra-se profundamente
Gertrúria dos seus versos. Eis um dos erros desiludido com a terra e com as suas gentes
mais comuns cometidos pelos biógrafos do (tal como Camões se manifestara três sécu-
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Poeta : tomar como factos históricos os epi- los antes). Para aproveitar o tempo decide
sódios descritos nos seus poemas. Tal como
seria erro ignorá-los completamente, tam-
bém o é encará-los sem reservas e, sobretu- Damão. Casa onde viveu Bocage.
do, sem lhes descontar a carga de hipérbole
e fantasia habitualmente associada à escrita vô paterno que servira no Exército
lírica. Na verdade, nada parece comprovar e na Armada durante as Guerras da
a existência de qualquer ressentimento entre Restauração -, não é de crer que Ma-
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os dois irmãos ou de qualquer sentimento nuel Maria sentisse verdadeira vo-
de paixão entre Manuel Maria e a sua futu- cação militar, pois mostrou, desde
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ra cunhada (que poderá, contudo, ter ser- muito cedo, um espírito irreverente,
vido de inspiração à personagem feminina liberal e pouco dado ao acatamento
atrás referida). de ordens. É provável que o jovem
Ora, na altura, mesmo as famílias mais Guarda-Marinha, mais poeta do
abastadas raramente tinham possibilidades que marinheiro, procurasse apenas
financeiras de dar estudos a mais do que um mais uma experiência de vida, uma série matricular-se na Aula Real da Marinha, em
filho (geralmente o primogénito). Assim, de aventuras que pudessem enriquecer a Pangim, de modo a prosseguir os estudos
enquanto Gil Francisco estava destinado a sua existência. que interrompera em Lisboa. Mas eis que
frequentar a Universidade de Coimbra, tal Não tem, porém, grande sucesso nos seus também aqui falha, por duas vezes (dois
como seu pai o fizera antes, Manuel Maria estudos, pois parece preferir a vida boémia anos lectivos), os seus intentos, embora desta
teve de se contentar com as lições de Latim de Lisboa à Geometria, à Navegação e à vez pareça ter havido uma justificação válida
do Padre (?) João Medina, que não teria sido Arquitectura Naval. Enquanto isso, vai ga- (motivos de saúde, ao que tudo indica).
avaro a empregar o velho método pedagógi- nhando fama como autor de poemas “fáceis” Tira partido das excelentes relações com
co da palmatoada (talvez daí um certo res- e lascivos, que muito injustamente iria mar- Sebastião Barroco, Secretário-Geral da Ín-
sentimento do seu discípulo para com os car a sua imagem futura. Acaba por receber dia, que com ele partilha o amor à Poesia.
frades e clérigos em geral). baixa de desertor em Junho de 1784. Também o seu comandante, Sousa Faro, tem
Mas já o jovem efebo sonhava com outras Tal não o impede, dois anos mais tarde, de dele muito boa impressão, considerando-o
aventuras. Vemo-lo, assim, em 1781, a assen- se oferecer como voluntário para embarcar, dotado de “viveza e bom desempenho”. Não
tar praça, como soldado, no Re- é, assim, de estranhar que, a 25
gimento de Infantaria de Setúbal, de Fevereiro de 1789, fosse pro-
cujo quartel se situava a curta dis- movido a Tenente de Infantaria
tância da casa onde vivia. (na altura não era difícil a tran-
Sempre insatisfeito, requer, sição entre a Armada e o Exérci-
dois anos mais tarde, a transfe- to, pois não havia uma separa-
rência para a Armada Real e o ção estanque entre ambos) “em
ingresso na recentemente inau- atenção a seus merecimentos e
gurada Academia dos Guar- serviços”. Ora, ao contrário do
das-Marinhas. Embora não ti- que afirma a tradição, nada nos
vesse carta de nobreza que lhe diz que estes “serviços” tenham
garantisse o acesso à carreira sido prestados em combate,
de Oficial, os seus anteceden- embora Bocage, num dos seus
tes familiares, nomeadamente poemas (mais uma vez tomado
os serviços prestados pelo seu por fonte fidedigna), mencione
afamado avô materno, foram uma batalha travada ao largo
considerados suficientes para de Chaul. É certo que, na época,
colmatar esta limitação. Cadeia do Limoeiro, onde Bocage esteve encarcerado. a Índia Portuguesa era um ves-
18 JANEIRO 2006 U REVISTA DA ARMADA