Page 204 - Revista da Armada
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Homens e Navios na obra
Homens e Navios na obra
de Teixeira de Sousa
de Teixeira de Sousa
m 3 de Março do ano corrente, em Oei- sua afeição - sejam pessoas, sejam navios. muito rija tempera as conseguiam suportar.
ras, quando fazia a sua marcha diária, Deve ainda haver quem se recorde dos ve- É precisamente esta a realidade que serve de
Eo escritor Henrique Teixeira de Sousa, leiros que faziam a cabotagem entre as ilhas, pano de fundo á obra de Teixeira de Sousa que,
de 87 anos de idade, foi atropelado por um ou as viagens mais longas para Dakar ou para a par dos enredos dos contos e dos romances,
automóvel. a América, em especial para Providence e New deixou escritas págimas imorredoiras de litera-
Poucos meses antes tivera lugar o lançamen- Bedford. Estes veleiros eram, na sua maioria tura marítima de inexcedivel perfeição.
to de “Ó Mar de Túrbidas Vagas”, o seu ultimo embarcações velhas, adquiridas em segunda Quando um marinheiro lê livros desta na-
livro. “Último”, no sentido de “mais recente”, terceira (ou “enésima”) mão, na América e em tureza, escritos ou traduzidos por quem não é
pois foi publicado em fins de 2005 ; profissional do mar está de antemão
mas “último” também como “derra- Ernestina preparado para encontrar erros na
deiro”, já que o escritor veio a falecer aplicação dos termos, incongruências
em consequência dos ferimentos sofri- e até , por vezes, autênticos disparates
dos. Assim, duma forma cruel e estú- que tornam incompreensivel o que o
pida, perdeu a literatura caboverdeana autor quer realmente dizer. É portan-
de expressão portuguesa um grande to com agradável surpresa que quem
autor, de cujo talento, não obstante a não conhecia Teixeira de Sousa vai,
sua idade já avançada, muito havia a pouco e pouco ao longo da leitura,
ainda a esperar. constatando que tudo o que se refere
Teixeira de Sousa era natural da Ilha a temática náutica está exposto com
do Fogo, onde nasceu em 1919. Li- absoluto rigor. E mais : que a descrição
cenciou-se em medicina, que exerceu dos ambientes e das manobras revela
profissionalmente, conciliando essa que o autor compreendia perfeitamen-
actividade com a de escritor. Em 1972 escreveu outros lugares, depois de terem sido postas de te aquilo de que estava a falar. As vozes de co-
um livro de contos, “Contra mar e vento”, ao parte por extinção das actividades em que eram mando e os termos para se referir ás questões
qual se seguiram vários outros, entre eles “Ca- utilizadas. Assim se explica a insólita presença, de marinharia são correctos , e as manobras
pitão de Mar e Terra” e “Ilhéu da Contenda” na frota de veleiros do Arquipélago, de navios complexas de vela, de fundear, de suspender, a
(que alguns consideram a sua melhor obra). das mais diversas origens, espécies e idades, subida de um navio a um plano inclinado rudi-
E, finalmente, em 2005 , o romance “Ó Mar de como o “ERNESTINA”, americano, de 1894; mentar, e todos os mil e um problemas da vida
Túrbidas Vagas”. do MARIA SONY, canadiano, de 1911 ; do MA- a bordo de uma veleiro são descritas tal qual
A temática marítima é uma constante em DALAN, ex-iate de luxo transformado em car- como teriam ocorrerido na realidade !
toda a sua obra, o que justifica que a Revista gueiro; do WALKIRIA, um baleeiro ; e até do Literatura deste tipo encontra-se num Celes-
da Armada lhe dedique uma singela homena- CORIOLANUS, um ex-clippper americano. To- tino Soares, num Conrad, e em alguns outros
gem, comentando-a junto dos seus leitores, que dos estavam em fim de vida util quando foram autores. Mas todos eles eram profissionais do
constituem um público muito especial, não só adquiridos, mas ainda navegaram ao longo de mar, pelo que não faria sentido que se exprimis-
por estarem tecnicamente preparados para a en- muitos anos, servindo as ilhas na cabotagem e sem doutra forma. Teixeira de Sousa era médi-
tender e apreciar como também porque, alguns nas viagens de longo curso, transportando pas- co, especialista em saude pública, com muitos
deles, poderão mesmo recordar factos descritos sageiros e carga em condições económicas e de trabalhos publicados e larguíssima experiência
nos livros, ou as realidades que serviram de ins- segurança muito precárias e dificeis. A ultima nesse sector. Como é então posssivel que tenha
piração a descrições fantasiadas. “importação” de um navio da América teve lu- alcançado tamanha mestria e domínio em as-
Muitos leitores da Revista da Armada esti- gar em 1970, mas correu mal : consistiu numa suntos maritimos, a ponto de ser impossivel
veram em Cabo Verde, em comissões nas Ilhas tentativa de trazer para Cabo Verde um veleiro detectar uma única incongruência, ou o mais
ou em estadias mais ou menos prolongadas de cerca de trinta metros, chamado CAPE EA- leve erro técnico, na sua prosa escorreita, sim-
em S. Vicente, especialmente nas décadas de GLE, que já não navegava há cinco anos : afun- ples, levemente irónica mas incontestavelmente
50 e 60. Por isso, conheceram bem aquelas ter- dou-se a 185` a NW das Bermudas, felizmente rigorosa? Qualquer marinheiro da actualidade
ras e as suas gentes, e sabem quanto o pes- sem perda de vidas… aprenderá nos seus livros coisas em que prova-
soal da Marinha apreciava as permanências A saga desse navios e dos homens que os tri- velmente nunca pensou – desde a melhor forma
no Mindelo. pulavam, e as terriveis dificuldades e perigos de utilizar as velas para aproveitar um aguacei-
Cabo Verde e a Marinha de Guerra Portu- de todas as naturezas que enfrentavam cons- ro e atestar tanques de aguada quasi vazios a
guesa sempre se relacionaram amigavelmente, tituem, uma lição de coragem e perseverança outras técnicas igualmente inéditas, curiosas e
processando-se o convivio entre marinheiros e que merecia ser melhor conhecida. Desde os específicas de um ramo de saber hoje já quase
naturais duma forma cordial e simpática. Essa tempos em que a sua actividade maritima no esquecido. Por tudo isto, me atrevo a comparar
estima recíproca está simbolizada num ícone Arquipélago se limitava ao embarque de tri- Teixeira de Sousa a Patrick O’Brian, que não
bem conhecido - a morna “Barca Sagres”, da pulantes nos baleeiros americanos, até á da sendo marinheiro, atingiu um grau de perfeição
autoria desse grande compositor que foi B. Leza. construção ou compra dos primeiros veleiros e, na literatura marítima só alcançavel por quem
Trata-se de uma peça musical só possivel num posteriormente, da constituição duma peque- conhece profundamente e compreende perfei-
ambiente de fraternidade e respeito mútuo, na frota de cabotagem e de navegação atlânti- tamente aquilo sobre que escreve.
como o revela a sua letra : o avistamento do na- ca, os marinheiros de Cabo Verde trabalharam Com a morte de Teixeira de Sousa, perde-
vio ao largo é saudado com alegria (“Selô Selô, é em condições de certo modo assimiláveis, no -se ainda o sentido de linhas de conexão entre
barca SAGRES!”), sendo-lhe atribuidos epítetos que ás dificuldades e perigos respeita, ás en- assuntos referidos em obras anteriores que se
carinhosos e poéticos (“noiba di mar”, “ama di frentadas pelos marinheiros de séculos anterio- prolongavam ou completavam noutras mais
marinhero”), expressões que a morabeza cabo- res. As condições de sobrevivência económica recentes. Assim sucede, por exemplo, com ao
verdeana reserva apenas para quem merece a eram extremamente dificeis, e só pessoas de naufrágio do EMA HELENA I, magistralmen-
22 JUNHO 2006 U REVISTA DA ARMADA