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Homens e Navios na obra
                      Homens e Navios na obra

                             de Teixeira de Sousa
                             de Teixeira de Sousa

              m 3 de Março do ano corrente, em Oei-  sua afeição  - sejam pessoas, sejam navios.  muito rija tempera as conseguiam suportar.
              ras, quando fazia a sua marcha diária,   Deve ainda haver quem se recorde dos ve-  É precisamente esta a realidade que serve de
         Eo escritor Henrique Teixeira de Sousa,  leiros que faziam a cabotagem entre as ilhas,  pano de fundo á obra de Teixeira de Sousa  que,
         de 87 anos de idade, foi atropelado por um  ou as viagens mais longas para Dakar ou para  a par dos enredos dos contos e dos  romances,
         automóvel.                         a América, em especial para Providence e New  deixou escritas págimas imorredoiras de litera-
           Poucos meses antes tivera lugar o lançamen-  Bedford. Estes veleiros eram, na sua maioria  tura marítima de inexcedivel perfeição.
         to de “Ó Mar de Túrbidas Vagas”, o seu ultimo  embarcações velhas, adquiridas em segunda   Quando um marinheiro lê livros desta na-
         livro. “Último”, no sentido de “mais recente”,  terceira (ou “enésima”) mão, na América e em  tureza, escritos ou traduzidos por quem não é
         pois foi publicado em fins de 2005 ;                                          profissional do mar  está de antemão
         mas “último” também como “derra-                                   Ernestina  preparado para encontrar erros  na
         deiro”, já que o escritor veio a falecer                                     aplicação dos termos, incongruências
         em consequência dos ferimentos sofri-                                        e até , por vezes, autênticos disparates
         dos. Assim, duma forma cruel e estú-                                         que tornam incompreensivel o que o
         pida, perdeu a literatura caboverdeana                                       autor quer realmente dizer. É portan-
         de expressão portuguesa um grande                                            to com agradável surpresa que quem
         autor, de cujo talento, não obstante a                                       não conhecia  Teixeira de Sousa vai,
         sua idade já avançada, muito havia                                           a pouco e pouco ao  longo da leitura,
         ainda a esperar.                                                             constatando que tudo o que se refere
           Teixeira de Sousa era natural da Ilha                                      a temática náutica está exposto com
         do Fogo, onde nasceu em 1919. Li-                                            absoluto rigor. E mais : que a descrição
         cenciou-se em medicina, que exerceu                                          dos ambientes e das manobras revela
         profissionalmente, conciliando essa                                           que o autor compreendia perfeitamen-
         actividade com a de escritor. Em 1972 escreveu  outros lugares, depois de terem  sido postas de  te aquilo de que estava a falar. As vozes de co-
         um livro de contos, “Contra mar e vento”, ao  parte por extinção das actividades em que eram  mando e os termos para se referir ás questões
         qual se seguiram vários outros, entre eles “Ca-  utilizadas. Assim se explica a insólita presença,  de marinharia são correctos , e  as manobras
         pitão de Mar e Terra” e “Ilhéu da Contenda”  na frota de veleiros do Arquipélago, de navios  complexas de vela, de fundear, de suspender, a
         (que alguns consideram a sua melhor obra).  das mais diversas origens, espécies e idades,  subida de um navio a um plano inclinado rudi-
         E, finalmente, em 2005 , o romance “Ó Mar de  como o “ERNESTINA”, americano,  de 1894;  mentar, e todos os mil e um problemas da vida
         Túrbidas Vagas”.                   do MARIA SONY, canadiano, de 1911 ; do MA-  a bordo de uma veleiro são descritas tal qual
           A temática marítima é uma constante em  DALAN,  ex-iate de luxo transformado em car-  como teriam ocorrerido na realidade !
         toda a sua obra, o que justifica que a Revista  gueiro; do WALKIRIA, um baleeiro ; e até do   Literatura deste tipo encontra-se num Celes-
         da Armada lhe dedique uma singela homena-  CORIOLANUS, um ex-clippper americano. To-  tino Soares, num Conrad, e em alguns outros
         gem, comentando-a junto dos seus  leitores, que  dos estavam em fim de vida util quando foram  autores. Mas  todos eles eram profissionais do
         constituem um público muito especial, não só  adquiridos, mas ainda navegaram ao longo de  mar, pelo que  não faria sentido que se exprimis-
         por estarem tecnicamente preparados para a en-  muitos anos, servindo as ilhas na cabotagem e  sem doutra forma. Teixeira de Sousa era médi-
         tender e apreciar como também porque, alguns  nas viagens de longo curso, transportando pas-  co, especialista em saude pública, com muitos
         deles,  poderão mesmo recordar factos descritos  sageiros e carga em condições económicas e de  trabalhos publicados e larguíssima experiência
         nos livros, ou as realidades que serviram de ins-  segurança muito precárias e dificeis. A ultima  nesse sector. Como é então posssivel que tenha
         piração a descrições fantasiadas.  “importação” de um navio da América teve lu-  alcançado tamanha mestria e domínio em as-
           Muitos leitores da Revista da Armada esti-  gar em 1970, mas correu mal : consistiu numa  suntos maritimos, a ponto de ser impossivel
         veram em Cabo Verde, em comissões nas Ilhas  tentativa de trazer para Cabo Verde um veleiro  detectar uma única incongruência, ou o mais
         ou em estadias mais ou menos prolongadas  de cerca de trinta metros, chamado CAPE EA-  leve erro técnico, na sua prosa escorreita, sim-
         em S. Vicente, especialmente nas décadas de  GLE, que já não navegava há cinco anos : afun-  ples, levemente irónica mas incontestavelmente
         50 e 60. Por isso, conheceram bem aquelas ter-  dou-se a  185` a NW das Bermudas, felizmente  rigorosa? Qualquer marinheiro da actualidade
         ras e as suas gentes, e   sabem quanto o pes-  sem perda de vidas…    aprenderá nos seus livros coisas em que prova-
         soal da Marinha apreciava as permanências   A saga desse navios e dos homens que os tri-  velmente nunca pensou – desde a melhor forma
         no Mindelo.                        pulavam, e as terriveis dificuldades e perigos  de utilizar as velas para aproveitar um aguacei-
           Cabo Verde e a Marinha de Guerra Portu-  de todas as naturezas que enfrentavam cons-  ro e atestar tanques de aguada quasi vazios a
         guesa sempre se relacionaram amigavelmente,  tituem, uma lição de coragem e perseverança  outras técnicas igualmente inéditas, curiosas e
         processando-se o convivio entre marinheiros e  que merecia ser melhor  conhecida. Desde os  específicas de um ramo de saber hoje já quase
         naturais duma forma cordial e simpática. Essa  tempos em que a sua actividade  maritima no  esquecido. Por tudo isto, me atrevo a comparar
         estima recíproca está simbolizada  num ícone  Arquipélago se limitava ao embarque de tri-  Teixeira de Sousa a Patrick O’Brian, que não
         bem conhecido - a morna “Barca Sagres”, da  pulantes nos baleeiros americanos, até á da  sendo marinheiro, atingiu um grau  de perfeição
         autoria desse grande compositor que foi B. Leza.  construção ou compra dos primeiros veleiros e,  na literatura marítima só alcançavel por quem
         Trata-se de uma peça musical só possivel num  posteriormente, da constituição duma peque-  conhece profundamente e compreende perfei-
         ambiente de fraternidade e respeito mútuo,  na frota de cabotagem e de navegação atlânti-  tamente aquilo sobre que escreve.
         como o revela a sua letra : o avistamento do na-  ca, os marinheiros de Cabo Verde trabalharam   Com a morte de Teixeira de Sousa, perde-
         vio ao largo é saudado com alegria (“Selô Selô, é  em condições de certo modo  assimiláveis, no  -se ainda o sentido de linhas de conexão entre
         barca SAGRES!”), sendo-lhe atribuidos epítetos  que ás dificuldades e perigos respeita,  ás en-  assuntos referidos em obras anteriores que se
         carinhosos e poéticos (“noiba di mar”, “ama di  frentadas pelos marinheiros de séculos anterio-  prolongavam ou completavam noutras mais
         marinhero”), expressões que a morabeza cabo-  res. As condições de sobrevivência económica  recentes. Assim sucede, por exemplo, com ao
         verdeana reserva apenas para quem merece a  eram extremamente dificeis, e só pessoas de  naufrágio do EMA HELENA I, magistralmen-

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