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A MARINHA DE D. JOÃO III (14)



             O domínio do mar das Molucas
             O domínio do mar das Molucas


               e forma subsidiária a todas as ques-  poder, contando-se por singulares as excep-  para seguir para Banda, nem Garcia Henri-
               tões que envolveram portugueses e  ções a esta tenebrosa regra. Nas Molucas,  ques quis desembarcar sem ter a certeza de
         Dcastelhanos nos anos vinte do sécu-  tudo podia agravar-se com a dificuldade de  que poderia tomar conta de todos os meios
         lo XVI, por causa das Molucas, deve acres-  comunicações e a enorme morosidade do  militares existentes em terra. Naturalmente,
         centar-se ainda uma questão. Nas Molucas  percurso. A viagem normal, seguindo pelo  subsistia a questão de que só em Janeiro se-
         apenas se produzia o cravo, e essa produ-  sul ao longo da coroa das ilhas do Arquipé-  guinte havia condições para fazer a viagem
         ção ultrapassava claramente a capacidade  lago Indonésio, obrigava a sair de Malaca  para Banda e Malaca, mas parece inacreditá-
         de consumo e venda na Europa. De forma  em Dezembro ou princípio de Janeiro, com  vel até que ponto a desconfiança não permi-
         que o domínio do seu comér-                                                     tia que convivessem em terra
         cio só tinha sentido quando                                                     durante os oito meses seguin-
         integrado na vasta teia de tro-                                                 tes. O assunto acabou por ter
         cas do Mundo Índico. Os chi-                                                    uma resolução facilitada por-
         neses consumiam uma parte,                                                      que o capitão cessante estava a
         e por ele davam as suas por-                                                    acabar de construir um junco,
         celanas e sedas, em Malaca;                                                     e para ele se mudou em Agos-
         e na Índia ficava outra par-                                                    to ou Setembro, com os bens
         te, com que se adquiriam os                                                     que acumulara em Ternate. E
         tecidos de Cambaia e outras                                                     este tipo de problemas repeti-
         mercadorias de menor impor-                                                     ram-se nas rendições seguintes
         tância neste sistema complexo                                                   merecendo a seguinte referên-
         de múltiplas trocas. Portanto,                                                  cia num texto anónimo, do sé-
         não era rentável desenvolver                                                    culo XVI, existente em Sevilha
         esforços de monta se não se                                                     e conhecido como Tratado das
         tinha acesso às outras merca-                                                   Ilhas Molucas: «Esteve [Garcia
         dorias e aos portos onde elas                                                   Henriques] sempre em guerra
         passavam. Malaca e Índia                                                        e assim entregou a D. Jorge de
         eram fundamentais para esse                                                     Meneses a terra e não sem re-
         comércio, e os castelhanos não                                                  voltas e diferenças que houve
         tinham acesso a nenhuma des-                                                    entre eles, porque assim Por-
         sas vias. Por isso, ao contrário                                                tugueses como Mouros nunca
         dos portugueses, pouco lucro                                                    outra coisa herdem nem des-
         poderiam tirar de um even-                                                      cem nesta parte». Na verdade,
         tual domínio das Molucas, e   Representação do Extremo Oriente por Fernão Vaz Dourado (1568).  os conflitos nas sucessões do
         disso se foram apercebendo   Biblioteca dos Duques de Alba, Madrid.             cargo foram uma constante, ha-
         nos anos que se seguiram à expedição de  a monção de NE/NW, esperando em Ban-  vendo casos em que alguns vieram sob pri-
         Magalhães, quando as diversas tentativas  da até que, em Maio ou Junho, fosse possível  são para Malaca. A ordem sobre as Molucas
         que efectuaram para lá chegar resultaram  passar às Molucas, já com a monção de SW.  só chegaria com António Galvão, nomeado
         em perdas quase totais dos navios ou no  Mas, quem assim fizesse, só em Janeiro po-  pelo rei e chegado a Ternate em 1536. Nessa
         aprisionamento das guarnições, às mãos  deria voltar para sul e, antes de seguir para  altura, os capitães já não faziam a viagem
         dos portugueses. O “negócio” de Sarago-  Malaca, teria de voltar a esperar em Banda  longa, que foi costume dos primeiros anos
         ça em 1529 acabaria por se transformar na  até Junho ou Julho. Esta volta podia durar  da presença lusitana. Desde a viagem de
         solução ideal para um conflito que ensom-  dezoito meses ou mais, fazendo com que  Jorge de Meneses, em 1527, que se ensaia-
         brava as relações peninsulares e – como  um percurso relativamente curto se tornas-  ra um caminho que, em Singapura, seguia
         sugere Luís Filipe Thomaz – talvez tivesse  se, tão ou mais, demorado quanto a viagem  para leste, contornando a ilha de Bornéu por
         sido bom para ambas as partes.     de Lisboa a Coxim. E é nestas circunstâncias  norte e fazendo a aproximação às Molucas
           Pela parte portuguesa – como já foi refe-  que o segundo capitão de Ternate, D. Gar-  vindo de noroeste, passando perto de Min-
         rido em anteriores números – a coroa quis  cia Henriques, foi nomeado ainda pelo go-  danau e norte das Celebes. A saída de Ma-
         construir uma fortaleza em Ternate e colocar  vernador D. Duarte de Meneses e só tomou  laca fazia-se em Agosto, no final da monção
         aí um Capitão, dotado do poder necessário  posse em 1525, bastante depois da morte  do SW, e a viagem era muito mais rápida. É
         ao domínio dos mares a leste de Malaca. E  de Vasco da Gama. Aliás, para ilustrar o cli-  interessante verificar como a abertura desta
         foi ainda D. Manuel que mandou seguir  ma de desconfiança mútua que reinava no  rota veio dar uma nova configuração à car-
         Jorge de Brito, depois substituído por seu  Oriente, parece-me interessante relatar os  tografia portuguesa sobre a região: até ali
         irmão António. Sob a sua direcção se ini-  insólitos acontecimentos que marcaram a  a, enorme, ilha de Bornéu está ausente dos
         ciou a construção da fortaleza de S. João de  sua chegada às Molucas. Passou de Banda  mapas mas, a pouco e pouco, vai-se definin-
         Ternate, a 24 de Junho de 1522, dando início  para Ternate na monção de Maio de 1524 e  do com os seus contornos e portos, tal como
         a uma presença que se prolongaria até qua-  à vista da fortaleza mandou recado a Antó-  nos surge no mapa da figura. A evolução da
         se ao final do século.              nio de Brito sobre as credenciais que tinha e  cartografia é, aliás, um excelente espelho da
           Acontece, no entanto que a forma de es-  a missão de que fora incumbido pelo gover-  forma como se desbravaram certos cami-
         tar dos portugueses no Oriente, em geral,  nador da Índia. No entanto, a desconfiança  nhos do mar.
         iria atravessar uma fase marcada por uma  entre o capitão cessante e o recém-chegado                  Z
         enorme confusão. A corrupção era endé-  era tal que, nem António de Brito se dispôs      J. Semedo de Matos
         mica e alastrava a quase todos os níveis do  a entregar a fortaleza antes de ter condições        CFR FZ

         20  JULHO 2006 U REVISTA DA ARMADA
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